Existe alguma sequência mais bela e sofisticada na história do cinema do que aquela em que Fred Astaire e Ginger Rogers dançam “Cheek To Cheek”, partindo de uma coreografia sutil para algo grandioso e memorável? Tudo se encaixa: os movimentos dos atores que os levam a um lugar mais suntuoso, o vestido deslumbrante de Rogers e o talento dos dois, que parecem flutuar. Astaire canta a música com uma força impressionante, ditando o ritmo da coreografia.
“Top Hat” é um dos principais precursores das comédias de “erros”, um filme cujo roteiro, apesar de não aspirar grandes ambições, é brilhantemente escrito, montando um cenário inicial e criando uma série de mal-entendidos.
Jerry Travers é um famoso dançarino que está em Londres para protagonizar o espetáculo de seu grande amigo, Horace Hardwick. A mulher do produtor não poderá acompanhar o show, pois está na Itália, mas espera ansiosamente pelos dois, principalmente por Jerry, já que Dale Tremont, uma antiga amiga, também irá encontrá-la e Madge gostaria de uni-los.
A verdade é que os protagonistas não precisam de cupidos, afinal, Jerry inicia o Top Hat sapateando em seu quarto, tirando o sono da pobre coitada, que decide ligar para o concierge.
A princípio feliz com a sua liberdade, Jerry logo muda de opinião ao se deparar com a amarga Dale, por quem rapidamente se apaixona. Ele tenta chamar a sua atenção de diversas maneiras, chegando até a ser o seu cocheiro e finalmente a convence quando faz uma poética analogia envolvendo o amor e a formação de trovões, que dá início a um dos melhores números musicais do filme, repleto de elegância, química e sentimento. Poucas cenas são tão lindas quanto essa.
As coisas parecem caminhar para um romance natural, no entanto, ao perguntar no saguão do hotel onde o marido de Madge estava hospedado, Dale se magoa ao não perceber que Horace e Jerry estavam dividindo o mesmo quarto.
A partir daí, nenhum personagem enxerga as coisas com clareza, levando o espectador ao desespero e a várias risadas.
Dale conta para a amiga sobre os avanços de seu marido e se surpreende com sua reação passiva. Horace, um pobre coitado, repentinamente se torna alvo de sua mulher, que o agride fisicamente, e do estilista de Dale, o italiano Beddini, que também deseja se casar com ela.
Após as reações efusivas da protagonista, o produtor decide colocar seu mordomo, Bates, para vigiá-la, a fim de proteger Jerry.
Uma trama aparentemente simples, se torna um emaranhado de confusões, julgamentos precipitados e uma comédia cuja força advém de reações inesperadas e descabidas.
Dale vive o drama de ter se apaixonado pelo marido de sua melhor amiga, contudo, sabemos que isso não é verdade e, apesar de vermos Rogers se debruçando em varandas com um olhar vazio e cabisbaixo, sabemos que, no fim, tudo se acertará.
O humor parte muito de Horace. Primeiro, pelo relacionamento atrapalhado que tem com o seu mordomo, que arranca algumas risadas com os seus disfarces infalíveis; segundo, porque ele é o personagem mais bonzinho dentro da trama e é o que mais sofre. Edward Everett Horton merece elogios por manter sua persona rígida e pelo excelente timing cômico.
O mesmo vale para Helen Broderick, que dá vida a Madge, um contraponto ao jeito apalermado do marido, esbanjando frieza e dureza.
Beddini é um italiano narcisista e insuportável, que ganha o status de “antagonista” por lutar pela mesma coisa que o nosso “herói”. A interpretação caricatural de Erik Rhodes é certeira.
Jerry e Dale vivem um romance e uma relação movida por ironias, sarcasmo e enganos. Há uma cena em especial, na qual a protagonista inventa uma história para surpreender “o mentiroso”, porém Jerry percebe o tom farsante de sua retórica e entra no jogo, dizendo absurdos que deixam Dale embasbacada.
O diretor Mark Sandrich merece elogios por criar sequências baseadas em desencontros e revelar a simples verdade apenas no clímax, mantendo a deliciosa atmosfera de erros até o fim. Assim como todos os cineastas que trabalharam com Rogers e Astaire, Sandrich sabe que não é a estrela do espetáculo e opta, sabiamente, por uma condução que se propõe a acompanhar os dois, colocando-os sempre na melhor posição dentro do quadro e utilizando planos longos nas cenas de dança. Sua mise en scéne merece elogios, principalmente em “Isn’t This A Lovely Day (to be Caught in the Rain)”, em que Rogers inicia de costas para Astaire, com uma expressão sisuda e, gradativamente, abre um sorriso que somente o espectador tem acesso – momento de humanização.
O design de produção lembra bastante o de “Swing Time” e o das obras da época de um modo geral.
Os cenários na Itália são especialmente bonitos e ambiciosos – destaque para as pontes, os enormes canais e as gôndolas.
Sobre as sequências de dança, nada que eu diga fará jus à grandiosidade e beleza delas.
“Top Hat, White Tie and Tails” é um dos grandes momentos solo de Astaire no cinema. Nos seus pés, o sapateado, um estilo que a princípio não permite um repertório farto, se torna uma forma de arte complexa e surpreendente.
“The Piccolino” é algo épico, repleto de movimentos, pessoas e fitas. Eu adoro como as danças nas obras de Astaire e Rogers não são apenas algo a se apreciar, são cenas fundamentais para o desenvolvimento da trama. Se em “Cheek To Cheek” sentimos um clima melancólico, em “Isn’t This A Lovely Day”, a sensação é de um amor puro e ingênuo, enquanto em “The Piccolino”, temos a convicção de que as coisas se acertaram e de que todos estão felizes.
Astaire e Rogers tem uma química fascinante, que lhes permite demonstrar ironia, paixão, mágoa, bom humor e alegria com a mesma intensidade.
“Top Hat” é um dos filmes mais marcantes da história do cinema.
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