Ah, o clima natalino… presentes, neve, felicidade e famílias unidas. Não para os Chasseur, que não conseguem dialogar em mais uma sessão de terapia de casal. Lloyd é objetivo e pragmático. Caroline, por sua vez, relata o affair que teve com uma tranquilidade inusitada. Como essas pessoas estão casadas? Elas já se amaram? A cada fala, uma demonstração de orgulho; eles não querem resolver os problemas, apenas provar que estão certos. O festival de egoísmo e de dedos apontados é interrompido quando o casal, voltando para casa, é sequestrado por Gus, um bandido procurado pela polícia. O diretor Ted Demme e o roteirista estabelecem o tom desde o início, deixando claro que o filme é uma comédia, não um drama ou um thriller.
Lloyd e Caroline estão tão ocupados tentando provar seus pontos, que, nem mesmo amarrados e na mira da morte, param de falar, levando o delinquente à loucura. Nesse sentido, a montagem apresenta um timing cômico excelente, comparando a harmonia das residências vizinhas com a dos Chasseur. A cada pessoa que bate à porta, Gus aponta a arma na cabeça de um dos reféns a fim de garantir que o plano prossiga normalmente. A situação permite que rotulemos os personagens e o grande mérito do roteiro é justamente desconstruir tais “regras”. Jesse, filho do casal, estuda na escola militar e é um “garoto problema” – condição alcançada graças à disfuncionalidade de seus pais. Há uma cena envolvendo Jesse e Gus na qual Demme, auxiliado pela montagem, evoca tensão; dito isso, como mencionei acima, o grande objetivo aqui é quebrar a expectativa do espectador, conferindo ao bandido, além de um carisma notável, uma humanidade reprimida pelo abandono social.
Em determinado momento, Jesse, cansado de dividir o teto com os pais, implora para que Gus o leve consigo. A resposta vem num tom melancólico: trata-se de um caminho sem volta. Aos 35 anos, Gus lamenta não ter uma família e uma casa; lamenta por ser um perito em assaltar casas. Ele é o verdadeiro terapeuta de casais; é a partir daquele cenário caótico e imprevisível que Caroline e Lloyd começam a agir como seres minimamente civilizados. Claro, as coisas evoluem quando a família inteira chega para a ceia natalina. O veneno que corrói adultos inseguros está no seio materno. Sim, Rose é uma figura lamentável, do tipo que economiza dinheiro presenteando entes queridos com meias. Mas essa é apenas uma pequena amostra de sua ardilosidade. Ela transformou Lloyd num homem mimado que evita desafios e enxerga tudo pela ótica mais simplista. Gary, irmão de Lloyd, age como um animal treinado a obedecer e a ficar calado. Rose, obviamente, sempre foi contra Caroline e abre um sorriso indiscreto ao saber que o casal está prestes a se divorciar. Caroline cometeu erros dos quais decidiu apagar da mente. Esse é o ponto. Os porta-retratos nos levam a crer que aquela já foi uma família feliz e apaixonada. Quando o diálogo deixou de ser uma prioridade? Quando eles se tornaram tão individualistas? À essa altura até esquecemos que Gus é um bandido e que Caroline e Lloyd são seus reféns, não seus amigos. O que poderia ser uma pilha de clichês, ganha contornos cada vez mais fascinantes: Gus é o único que enxerga o todo e entende quem Caroline e Lloyd verdadeiramente são. O mesmo acontece do outro lado, não à toa, no fim, a ansiedade é por garantir que o bandido tenha êxito em sua fuga.
Judy Davis e Kevin Spacey apresentam uma química incrível, tanto para a comédia, quanto para a percepção do espectador que aquele é um casal em frangalhos. Denis Leary rouba a cena com seu carisma envolvente e humanidade surpreendente.
O falecido Ted Demme não tinha o talento de seu tio, o brilhante Jonathan Demme, e sabia disso. Seus projetos são quase sempre sobre personagens cujas camadas só enxergamos olhando bem de perto. “Beautiful Girls”, de 1996, é a sua obra prima, mas “The Ref”, de 1994, é um grande filme.