Harry Caul é um especialista em espiar/grampear conversas e seu novo trabalho exige um nível de elaboração poucas vezes visto no ramo.
“Ele nos mataria se tivesse a chance”, essa é a frase que o protagonista desvenda e que desperta a sua atenção para uma eventual tragédia.
Ao chegar em casa, Harry pergunta para sua vizinha como ela conseguiu colocar uma garrafa de vinho em seu apartamento e se assusta ao descobrir a existência de uma outra chave que abre sua porta. O agradecimento fica de lado, algo mais importante do que seu aniversário veio à tona. Ele guarda seu telefone dentro de uma gaveta e não disponibiliza o número para nenhuma pessoa.
Harry é tão bom no que faz, que acaba se sentindo ameaçado, ainda que ninguém tenha o seu talento, nem a capacidade de enganá-lo. Seu trabalho mais célebre acarretou a morte de três pessoas e esse fantasma o persegue até hoje, revelado na sua forte religiosidade e necessidade de se confessar.
O protagonista escuta tanto os outros e invade a privacidade alheia com tanta facilidade, que não consegue se abrir, simplesmente não consegue se relacionar, seja com seu assistente, seja com uma mulher que o interesse. Em determinada cena, Harry pergunta a uma moça se ela poderia se apaixonar por um homem que não dissesse nada sobre si, que escondesse todos os seus segredos. Seu emprego é a sua maldição, o que o impede de socializar e de seguir em frente, como certamente gostaria.
Para Harry, dizer a própria idade é uma forma de se “entregar”, quando na verdade, é exatamente a falta de diálogo que o mantém nesse constante estado de alerta, como se todos estivessem envolvidos em uma grande conspiração.
De uma forma ou de outra, Harry sempre afasta aqueles que se importam com ele, mantendo-se em uma perigosa zona de conforto, na qual a solidão reina e a paranoia está a um estalo de estourar.
Diferentemente de Bernie, seu “rival”, que se veste de roxo para chamar a atenção das pessoas, o protagonista nunca muda de aparência, sendo a sobriedade e o senso de observação suas principais marcas. Após uma conferência, alguns colegas armam uma festa em seu galpão. Inseguro e desconfortável com as perguntas de Bernie, Harry chega ao seu limite quando seu “adversário” o grampeia, num raro momento em que ele se abria para uma mulher, levando-o a um estado de fúria palpável. Por um lado, o protagonista adora ser considerado o melhor no que faz, por outro, sente que seu trabalho o levou a um nível de esgotamento emocional, misturado com culpa e medo de se relacionar.
“The Conversation” não é somente um estudo sobre solidão e paranoia, é um suspense inteligente, que encontra no atormentado Harry a figura perfeita para se envolver diretamente em mais um possível assassinato. A fita é muito clara, alguém irá morrer e, muito provavelmente, será o casal grampeado. Seu passado, somado a sua suspeita e as misteriosas aparições de Martin Street, assistente do diretor da empresa que o contratou, deixam esse homem ainda mais desconfiado e perturbado.
A princípio, ele se recusa a entregar as fitas, mas acaba sendo “trapaceado” e embarca numa jornada que o leva literalmente ao chão de um banheiro, a fim de grampear um quarto de hotel.
Coppola – um roteirista espetacular – nos presenteia com uma certa reviravolta, culminando em um desfecho que conversa com os principais temas da obra e que certamente está entre os mais emblemáticos da história do cinema.
A direção de arte salienta a condição do protagonista a partir do uso de tons pastéis em seu apartamento, cuja variação de cores é inexistente, sendo o verde o símbolo de sua solidão. O próprio figurino de Harry é algo que não chama a atenção – quase sempre veste uma capa de chuva -, cobrindo seus sentimentos. O vermelho é uma cor enfatizada por Coppola, tendo as conotações de violência e de poder – sofás e paredes na sala do diretor. O galpão onde o protagonista trabalha também não tem vida, parece um espaço abandonado. As grades ressaltam a culpa que o protagonista sente.
A fotografia aposta em tons acinzentados e azulados para evocar uma certa melancolia e um senso de aprisionamento. Harry não consegue se desvencilhar das armadilhas de sua mente e se vê preso por ele mesmo a uma existência vazia e indesejada.
A trilha sonora, inteiramente tocada em piano, cumpre um papel narrativo essencial, suscitando um mistério elegante e gradativo, chegando a ter toques de horror no terceiro ato.
A montagem não é nada intrusiva, no entanto, entra no momento certo para enfatizar uma sensação e potencializar o suspense. A cena no hotel é um grande exemplo de como cortes precisos, acima de qualquer outro artifício, são capazes de criar uma atmosfera tensa e atordoante. O trabalho imaginativo de Harry, que precisa pensar na situação enquanto escuta diálogos inconclusivos, é muito bem pontuado pela montagem.
Coppola é um diretor que sabe exatamente o que está fazendo e que dificilmente toma decisões equivocadas. Seus travellings e suas panorâmicas são suaves; ajudam na fluidez do filme e podem dizer algo a mais sobre a psique do protagonista, como, por exemplo, na festa, em que ele se sente envergonhado e tenso quando Bernie começa a fazer perguntas sobre o tal caso que resultou na morte de três pessoas. Coppola não faz muito esforço, nem tenta impressionar o espectador, porém sabe exatamente a hora de movimentar sua câmera de forma mais efusiva e de fechar o quadro, gerando tensão e uma certa instabilidade, conversando com o estado de Harry. Nesse sentido, o destaque vai para a longa sequência final, que encapsula todas as qualidades da obra, indo da tranquilidade de um homem tocando saxofone – seu único hobby – para uma sensação impressionante de claustrofobia e vulnerabilidade.
No entanto, diria que o grande êxito do diretor é tratar o protagonista como um homem triste e solitário, o posicionando sozinho dentro do quadro.
Seus planos-detalhe vão ao encontro do ótimo design de som, que reforça barulhos extremamente sutis.
Gene Hackman oferece uma performance sóbria, forte e delicada. Somos capazes de distinguir o Harry que se apresenta para os demais e o que realmente passa em sua mente e isso é mérito de Hackman, que merece elogios por nunca se exceder, manter uma rigidez e, ainda assim, desenvolver um protagonista repleto de nuances e demônios internos.
Gostaria de enaltecer as participações de Harrison Ford, que interpreta Martin Street, mantendo uma incerteza em torno do personagem, e do saudoso John Cazale, que dá vida a Stan, o assistente de Harry.
“The Conversation” rendeu a Francis Ford Coppola a sua primeira Palma de Ouro e é, de fato, uma obra-prima.
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