“Sweetie” é um filme bastante peculiar, claramente um feito de uma artista com uma visão específica e sincera.
Kay é uma jovem introspectiva e solitária que precisa de algum tipo de guia para seguir adiante. A cartomante diz que o amor de sua vida terá um ponto de interrogação em seu rosto e é exatamente o que ela encontra em Louis, recém noivo de sua colega de trabalho. Sem muita cerimônia, Kay diz o que precisa e os dois acabam ficando juntos.
Seu maior pavor, desde a infância, são árvores e a relação se complica justamente quando Louis, desconhecendo o trauma da namorada, planta uma no jardim.
Kay é paranoica, ansiosa e fria. Campion é precisa ao utilizar planos-detalhe que enfatizam suas emoções e ao posicionar a câmera estrategicamente quando o casal tenta se envolver sexualmente, mantendo uma distância significativa.
“Provavelmente é mais espiritual assim”, diz Louis, referindo-se à ausência de sexo. Ele é compreensivo e sereno, o que se deve muito ao fato de meditar e de evitar conflitos. No entanto, o jeito da parceira drena sua energia, transformando-o em um homem inseguro e triste.
Tudo muda quando Sweetie, irmã de Kay, invade o apartamento do casal com um suposto produtor musical e decide que vai se estabelecer ali mesmo. Ela é simpática, porém completamente maluca. Amor e ódio caminham numa linha tênue que dita a relação entre as duas, cujas personalidades não poderiam ser mais distintas. Kay tem uma enorme dificuldade de assumir sentimentos, de se envolver com alguém e o único motivo por ter se declarado para Louis foi um “chamado espiritual”, em contrapartida, Sweetie é direta e calorosa. Ao me referir a personagem que dá nome ao título como maluca, não brinco, é uma questão psicológica que precisa ser conduzida com muito cuidado. Isso não muda o fato dela ser intrusiva e irritante, tendo a cara de pau de levar um sujeito lamentável para a casa da irmã.
Para piorar a situação, o pai das duas, recentemente abandonado por Flo, sua esposa, também aparece na residência. Melancólico e precisando de suporte emocional, Gordon é o único que entende e valoriza o talento de Sweetie. Ele acredita que Bob possa ser a grande oportunidade para alavancar a carreira da filha, no entanto, em uma das cenas mais engraçadas do filme, percebe que o tal produtor não passa de um “corpo ambulante”. As memórias da infância enriquecem a obra, afinal, no meio de tanta confusão e tristeza, havia laços fortes e bonitos entre pessoas que já não se conheciam mais.
O tempo passa e notamos que é praticamente impossível se desvencilhar de Sweetie, cuja inteligência impressiona. Kay, Gordon e Louis vão atrás de Flo, que se mudou para o deserto e vive alimentando homens que cuidam de gado. Em determinado momento, Kay fala para o namorado que nunca viu a mãe tão feliz, nem fazia ideia de que ela sabia cantar. O que todos os personagens buscam, foi encontrado por Flo num lugar, no mínimo, inusitado.
De qualquer forma, ela sabe que precisa ajudar a frágil filha e se sente mal ao ver Gordon, seu grande companheiro, naquele estado. Os dois conseguem tirar Sweetie da casa de Kay, entretanto, quando as coisas pareciam finalmente caminhar bem, Louis descobre que a namorada matou a árvore que ele havia plantado, colocando um ponto final num relacionamento marcado por tentativas e angústia.
O clímax chega e fecha a trama com muita delicadeza, unindo humor e tragédia com precisão. Sweetie talvez fosse um dos principais motivos pelo caos e a sua morte traz uma certa tranquilidade aos personagens, contudo, e ainda mais importante, é o seu legado. No fundo, ela só queria que todos estivessem juntos, em harmonia, e é com essa mensagem amorosa que o filme termina.
Jane Campion é uma diretora inteligentíssima. Sua câmera, muitas vezes, emula o olhar de Kay, colocando o espectador numa rara posição de empatia. Sua mise en scéne é sensacional, os personagens estão sempre em posições que dizem muito sobre suas personalidades e lugar dentro dos conflitos. A forma que retrata o fim do relacionamento entre Kay e Louis é inventiva e brilhante – enquanto os dois caminham pela calçada, a câmera os acompanha, se distanciando, gradativamente, do casal. O plano geral do deserto, no qual Bob se encontra sentado também é perfeito ao expor sua solidão e melancolia.
No entanto, o que mais chamou a minha atenção foi a capacidade de Campion em criar uma obra, ao mesmo tempo, “esquisita”, repleta de seres “anormais”, e sensível, humana. A tragédia e o humor caminham lado a lado em uma trama repleta de momentos inusitadamente cômicos, reações incompatíveis com a realidade e pessoas profundamente atormentados, seja por uma deficiência, seja pela dor do abandono, seja pelo medo de se relacionar e o desespero ao se deparar com o passado, seja por ver sua parceira se distanciar.
De certa forma, “Sweetie” me remeteu aos filmes de Todd Solondz, famosos pelo humor controverso e pela coleção inacreditável de personagens.
A direção de arte encontra em tons esverdeados a frieza necessária para retratar o relacionamento entre Kay e Louis e os distúrbios mentais de Sweetie. A escuridão, na cena em que o casal dorme em quartos separados e cada um fecha suas respectivas portas, é bem expressiva. Os figurinos servem para diferenciar, principalmente as irmãs – a mais introvertida usa roupas “tradicionais” e varia muito pouco as cores, por outro lado, Sweetie, um espírito livre, opta por camisas floridas, maquiagem e, às vezes, aparece despida.
A trilha sonora é um dos principais complementos para o êxito do trabalho ambicioso de Campion, sendo, na maioria das vezes, um elemento humorístico, com letras bem explícitas.
A montagem segue nessa linha, auxiliando na comicidade através de cortes precisos, que impressionam pelo timing. Não poderia deixar de elogiar sua eficiência no clímax, potencializando a tensão.
Geneviève Lemon faz de Sweetie uma jovem complexa, desagradável e extremamente carente, cujo principal intuito é viver feliz ao lado de seus familiares, ainda que seja exclusivamente em seu mundo fantasioso.
Tom Lycos oferece uma performance calcada na tranquilidade e na dor que seu personagem acumula. Sua feição muda ao longo da trama e sua transformação é sutil. Louis é apaixonado por uma mulher que parece sofrer de um desinteresse crônico, que não o deseja mais – pelo menos é o que pensamos.
Por último, Karen Colston, o grande destaque do filme. Sua interpretação passa por uma incrível entrega corporal – Kay está quase sempre curvada ou encolhida, seu rosto dificilmente muda de expressão e sua entonação vocal é retraída, assustada. Ela quer que as coisas deem certo, mas se esforça tanto tentando relaxar, que parece nervosa. Sua cabeça foca em questões espirituais e traumas passados, quando, na verdade, sua vida estava bem à sua frente.
“Sweetie” é uma bela estreia, de uma diretora que confirmou seu talento ao longo das décadas.
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