“Suspiria”, 1977, dirigido por Dario Argento, é considerado um dos filmes de horror mais importantes e influentes de todos os tempos. É o tipo de obra que não se deve mexer. No entanto, para a minha surpresa, Luca Guadagnino não só atualizou, como adicionou elementos mais interessantes ao clássico. Ele não fez um “remake”, seu “Suspiria” é autoral, repleto de decisões artísticas e temáticas fascinantes.
O filme se passa na Alemanha, em 1977, período político conturbado, movido por embates físicos, atos terroristas e os resquícios deixados pelo Reich.
Susie é uma dançarina promissora e chega em Berlim com o sonho de ser admitida na renomada Companhia Markos, onde sua grande inspiração, Madame Blanc, é a principal professora. Ela só é aceita porque Patricia, “a escolhida”, enlouqueceu e fugiu. Vale ressaltar que o filme inicia com a jovem entregando seu diário a um psiquiatra, demonstrando inquietação e pavor. Quem assistiu o original sabe o que as professoras são na verdade bruxas e que a Companhia é um culto, no qual elas escolhem uma dançarina para doar seu corpo para Markos, uma velha moribunda que diz ser a Mãe Suspiriorum, uma das três bruxas supremas.
Susie impressiona Blanc com sua habilidade e forte personalidade, encoberta por uma camada de timidez e fragilidade. As personagens mantêm certas aparências. As professoras precisam segurar suas máscaras, manipular as alunas, fazendo-as acreditar que aquele é um ambiente amoroso e familiar. Em determinada cena, vemos todas conversando por telepatia, enquanto as jovens as observam acreditando que as risadas vêm de conversas casuais e despretensiosas.
O psiquiatra, Dr. Josef Klemperer, é uma figura importante, não só por sua busca por respostas e pela persistente investigação, mas também por ter um arco próprio, que adiciona camadas à trama. Sua mulher morreu em um campo de concentração e as sequelas do passado seguem intactas. Sua curiosidade pelo caso de Patricia advém de um profundo vazio, uma vontade de dar um sentido à sua existência e de sair de seu escritório.
Algumas personagens entram no seu jogo e acabam se ferindo, sendo Sara, que fala sobre a Companhia com a pureza e a inocência que as bruxas projetaram em sua mente, a mais notável. No entanto, a relação que realmente chama a atenção é entre Blanc e Susie. Iniciando como a garota estrangeira e tímida, a protagonista, gradativamente, ganha seu espaço, a ponto de confrontar e até dominar a professora, que se encanta por ela. Blanc é poderosa, controla os sonhos da jovem, a induz a aceitar o “seu destino”, porém percebe que Susie não é exatamente quem pensava e que seu poder não pode ser subestimado.
Guadagnino prepara o terreno até o ritual, no qual as coisas não saem como o esperado.
Se a versão de 1977 apostava em cores fortes, a fotografia deste vai no sentido oposto, optando por tons frios, sendo o cinza o mais marcante. O que acontece nas ruas conversa diretamente com o que se passa entre as paredes da Companhia Markos e essa sensação de desesperança, incerteza e tensão é brilhantemente instaurada. Podemos dizer que o vermelho e o feixe de luz que assombra Susie fogem um pouco do padrão, entretanto, são essenciais para o conceito de “dança da morte” que o filme estabelece. Existem outros constrastes, mas são em situações bem específicas.
A direção de arte segue uma dinâmica interessante com a fotografia. A arquitetura da Companhia é imponente, porém marcada por cores simples e paredes em tons pastéis. Aos poucos, descobrimos esconderijos, que destoam da imagem que as bruxas querem passar, sendo verdadeiros calabouços, tomados por uma escuridão absoluta, repletos de baús e objetos valiosos e antigos. Um sofá vermelho talvez diga algo sobre a real identidade daquelas mulheres, mas não há nada muito nítido, a não ser o que está escondido. Os figurinos são elegantes e sóbrios, excelentes disfarces; por outro lado, a roupa utilizada pelas dançarinas na apresentação evoca a sensação de morte e violência – vermelho clássico. Outra diferença entre as versões é que na anterior as professoras demonstravam uma certa estranheza logo de cara; já aqui, sabemos o que elas são, mas demoramos a ter certeza absoluta, afinal, são figuras críveis. Na sala de Josef, podemos ver alguns porta-retratos que refletem a sua dor e saudade. Berlim é igualmente fria e apavorante, inundada pela neve e por um enorme muro.
O design de som é fundamental para apresentar ao espectador os poderes das bruxas, que escutam conversas e sons baixíssimos.
Luca Gudagnino apresenta um domínio impressionante da linguagem cinematográfica. Seu repertório é vasto e vai na contramão das produções atuais do gênero horror. Sua direção é extremamente sugestiva. Sempre sabemos quando algo apavorante ou desconfortável irá acontecer, seja por planos adicionais (ambientes vazios, por exemplo), seja por zooms inesperados, seja por planos-detalhe, seja por movimentos de câmera elegantes, seja pela rima que cria entre plongée e contra plongée – alternando as posições de dominância constantemente e o significado dos planos.
Sua mise en scéne é preciosa. Peguemos dois exemplos: no primeiro, uma das bruxas está escorada em uma parede cinza, longe das demais, ressaltando sua melancolia e, pouco antes do terceiro ato, a mesma comete suicídio; no segundo, Susie e Blanc estão em posições opostas na mesa, no entanto, a força de seus olhares e o quadro que se fecha são provas do profundo envolvimento das duas.
Ele coloca Josef quase sempre sozinho, salientando sua condição e os resquícios de uma guerra que ainda atormentava seu coração.
O plano sequência em que as bruxas são introduzidas é plasticamente perfeito. Guadagnino sabe exatamente para onde sua câmera deve estar direcionada, explorando as principais reações e não o que está sendo propriamente dito – muito da atmosfera aterrorizante surge de detalhes simples como esse.
O que falar do clímax? Além de revelador, é uma verdadeira explosão imagética, sem dúvida alguma, uma das sequências mais inventivas dos últimos tempos.
A montagem é igualmente espetacular. Os cortes abruptos, principalmente os jump cuts, dão um tom esquisito e absurdo ao filme.
O mesmo pode ser dito sobre a inserção de pesadelos, que reforçam o que disse sobre a inventividade do diretor para criar quadros e imagens realmente assustadores. A cena mais violenta é a que Olga é “misteriosamente” destroçada, o que só foi possível graças aos raccords de movimento. Enquanto Susie dança e se entrega, Olga, em outra sala, se contorciona, literalmente quebrando todos os seus ossos – a imagem que as bruxas querem passar X o que realmente acontece ali. Esse e outros tipos de raccord aparecem ao longo da trama e são sempre bem-vindos quando bem realizados.
Não poderia deixar de citar a fantástica trilha sonora de Thom Yorke. Os temas e as canções casam perfeitamente com a proposta sóbria, fria e atmosférica de Guadagnino.
Dakota Johnson é uma grata surpresa, encarnando Susie, a princípio, como uma jovem comum e tímida que, lentamente, se solta e mostra a sua real persona. A mudança no seu olhar – meigo ao penetrante – e a força que a atriz demonstra no terceiro ato são transições dignas de grandes artistas.
No entanto, o grande destaque não poderia ser outro a não ser a performance de Tilda Swinton. Melhor dizendo, as performances, já que ela dá vida à três personagens. Blanc é imponente, manipulativa, falsamente cordial e esconde uma certa humanidade, o que a torna complexa. Markos é uma velha decrépita e egoísta, uma verdadeira farsa. Josef (isso mesmo, Swinton interpreta um homem) não é o seu melhor personagem, mas é, sem dúvida alguma, a sua melhor caracterização. Sua fala pausada, a dificuldade em dar cada passo e o tremer das mãos são trejeitos muito bem calculados. O trabalho de maquiagem merece elogios por descaracterizar Swinton completamente e não torná-la uma caricatura. Só descobri que ela interpretava Josef e Markos nos créditos.
“Suspiria” é um filme angustiante e visualmente aterrorizante, que merece elogios pelo perfeccionismo de toda a equipe envolvida e por trilhar o seu próprio caminho.
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