O filme começa com uma troca de olhares entre um homem muito bem vestido e uma mulher no mínimo misteriosa. Ele deixa de pagar a conta e ela vai cobrá-lo, sendo na verdade uma armadilha para colocá-lo em seu carro e partir em busca de diversão.
Charles foi recentemente promovido para a vice-presidência de sua empresa e esbanja ingenuidade na sua forma doce e atrapalhada de se comunicar. Lulu é sedutora, provocativa e sabe muito bem como dominar qualquer homem, ainda mais um como Charlie. O protagonista é casado e tem dois filhos, porém é pego tão de surpresa, que fica sem reação aos jogos de Lulu, que o leva para um motel e liga para o seu chefe, deixando-o completamente louco.
“Something Wild” é uma espécie de “Curtindo A Vida Adoidado” para adultos. É sobre um sujeito com uma vida segura e chata, uma família padrão e um cotidiano pacato. Repentinamente, uma dose de adrenalina é injetada em suas veias e Charlie percebe que não é aquele cara monótono que pensava ser e que a felicidade é injustamente subestimada em um mundo movido por obrigações e convenções sociais.
As algemas representam o estado em que o protagonista se encontrava até encontrar Lulu. As pessoas esperam por um determinado comportamento e, às vezes, queremos apenas dizer um bom e belo “foda-se” para tudo e aproveitar o pouco tempo que temos.
Charlie vai a um motel, transa como um animal, participa de pequenos furtos, destrói uma placa rodoviária, dá carona a um grupo de hippies, é apresentado para a mãe de Lulu como seu marido e vai ao seu reencontro com os amigos do colégio. Seu terno cinza é trocado por um paletó azul e uma gravata amarela – uma nova fase, um novo ânimo.
Lulu o coloca em situações delicadas e, gradativamente, o desmonta, provando que por baixo da persona rígida e correta, existia um homem repleto de anseios e desejos reprimidos. Pode parecer uma grande bobagem escapista para alguns, mas, para mim, é um raro filme que compreende a importância de ser feliz. As pessoas enxergam suas existências com uma demasiada seriedade e esquecem que, enquanto seres humanos, o nosso maior combustível é a alegria, um estado de leveza e tranquilidade. Percebam como Charlie dança no baile e vislumbrem o que é a felicidade genuína. Lulu, a princípio, parece uma golpista, mas está apenas atrás de um homem decente, um que precisa de ajuda. Ela tira suas preocupações, suas neuroses e obrigações, transformando-o no sujeito mais confiante, radiante e presente possível.
As coisas mudam quando Ray, o verdadeiro marido de Lulu, que estava preso, surpreendentemente aparece. O ex-presidiário não gosta nada de ver Charlie abraçado com sua mulher, mas age com calma e uma falsa cordialidade que segura a tensão até o limite. Ray é intimidador, é o tipo do cara que trata seu “adversário” como um amigo, se aproveitando da ingenuidade do alegre Charlie para mostrar quem realmente manda no pedaço no momento mais oportuno. Ray desfaz certas máscaras. Já sabíamos que o verdadeiro nome de Lulu era Audrey, no entanto, a grande revelação surge quando o antagonista faz Charlie assumir que foi abandonado pela esposa. Ou seja, ele não tinha uma vida chata e segura, era solitário e deprimido, o que torna sua jornada ainda mais significativa. Audrey sente que foi enganada, denotando uma certa hipocrisia, afinal, ela não era o melhor exemplo de honestidade. Sim, Charlie era um mentiroso convincente, mas também era um homem carinhoso, gentil e bondoso. Ray sente que venceu a guerra ao expulsar efusivamente o protagonista de sua vida, contudo, Charlie não estava disposto a perder o que havia conquistado, então os persegue e monta um plano infalível. Usando um disfarce impagável, ele aproveita a presença de policiais em um “Diner” e tira tudo que Ray tinha, em uma das cenas mais engraçadas do filme. Obviamente, o antagonista não deixaria a situação por assim, nos levando ao clímax.
Charlie e Audrey demonstram suas reais faces, pessoas vazias e infelizes que não sabiam o que o futuro reservava. Há um clima de desconfiança, mas, principalmente, um de que “o conto de fadas” chegou ao fim.
Jonathan Demme merece muitos elogios por conceber uma série de sequências marcantes com tons completamente diferentes. Ele cria um intimismo sutil e romântico entre os protagonistas; trabalha bem o humor ocasional quando um colega de trabalho esbarra em Charlie no meio do caminho; utiliza a câmera de segurança e a trilha sonora para subverter uma cena violenta, tornando-a engraçada; evoca um forte suspense no momento em que Ray assalta uma mercearia, enquanto a montagem organiza as inúmeras ações através de cortes dinâmicos; transita perfeitamente entre o entusiasmo de uma dança para uma sequência com toques de horror e violência. O clímax é mais um exemplo de como cortes precisos e a movimentação de câmera ideal tornam algo, possivelmente simples, em uma maravilha. Rimos bastante, aprendemos lições importantes, nos deparamos com uma inusitada melancolia e sentimos medo. Poucos diretores conseguem extrair tantos sentimentos de um espectador e ainda fazer com que ele saia do filme revigorado, repleto de esperanças.
Demme e o roteiro assinado por Max Frye estão sempre um passo à frente. Nunca temos certeza do que vai acontecer após uma cena e a cada minuto eu me sentia surpreso, satisfeito e hipnotizado pela inventividade dos realizadores.
A direção não para por aí, Jonathan Demme adota um certo voyeurismo em alguns momentos, por exemplo, quando Charlie e Audrey vão para o motel ou quando o protagonista observa seu amor com Ray de uma distância segura. As janelas são recorrentes e representam a curiosidade humana, o que deveria ser invisível.
Demme usa close ups para ressaltar o espanto inicial de Charlie com a situação e para apresentar Ray, indicando o seu papel malicioso dentro da trama. Seus planos-detalhe sensualizam Audrey e conversam diretamente com a reação do protagonista.
A fotografia ganha contrastes mais interessantes no terceiro ato, quando Ray aparece, tornando tudo mais escuro e esfumaçado.
A direção de arte é sutil. Adorei a presença de porta-retratos da jovem Audrey na casa de sua mãe, enfatizando que algum dia ela já foi uma criatura ingênua e pura. Por outro lado, a residência de Charlie conversa com a sua vida – vazia e sem móveis, apenas com algumas memórias do passado.
Não poderia deixar de elogiar o bom gosto musical de Demme, que sempre escolhe canções excelentes e que cabem dentro de suas tramas.
Ray Liotta está sensacional como o vilão carismático, engraçado e letal, que controla muito bem a sua retórica e impressiona pela força física.
Melanie Griffith nunca esteve melhor. Sua personagem, a princípio, é apenas sexy, impulsiva e enigmática. Aos poucos, Audrey se expõe, provando ser uma mulher, simultaneamente, forte e frágil, que já lidou com vários “Rays” e que finalmente encontrou alguém que a valorize. Seu arco pode ser evidenciado na sua brusca mudança de figurino.
Jeff Daniels oferece uma performance memorável, iniciando como um sujeito travado e padrão, que, lentamente se solta e percebe que pode ser feliz sem sentir culpa. Observar a sua transição é uma delícia. O ator se sai muito bem no humor e surpreende quando precisa expressar a melancolia inerente a Charlie, assim como nas elaboradas sequências de ação.
“Something Wild” é um filme inspirador e contagiante, que flutua entre gêneros, mas nunca perde a sua essência cômica e romântica.
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