“Rocco e Seus Irmãos” é um dos filmes mais poderosos que já assisti. Visconti sabia conduzir melodramas operísticos como ninguém e, mesmo considerando “O Leopardo” a sua principal obra, sinceramente, não sei se é melhor do que esta.
Não posso negar, este é um filme angustiante, um épico tão sentimental, que em determinados momentos meu corpo, involuntariamente, reagia preocupado.
O irmão é o melhor amigo, seu principal aliado e companheiro. Não existe amor maior e Visconti sabe disso. O roteiro nos apresenta os cinco irmãos, trabalha bem todos, mas dá ênfase para dois deles.
Após a morte do patriarca, a família Parondi se muda para Milão em busca de oportunidades. A mãe, Rosaria, tem um senso de proteção absurdo e faz de tudo para manter o núcleo fortificado, ainda que brigue com a esposa de seu primogênito.
Está nevando, então eles acordam de madrugada, procuram empregos e demonstram um otimismo reconfortante. A casa é pequena e precária, ressaltando também o afeto mútuo. Visconti entende como funciona a dinâmica entre irmãos e é um prazer vê-los interagindo.
Vincenzo é o mais estabelecido, inclusive já vivia em Milão. Seu casamento só não foi realizado, porque Rosaria não se dá bem com a família de sua esposa.
Ciro é estudioso e está prestes a se tornar um mecânico da Alfa Romeo.
Luca é apenas um garoto e enxerga nos irmãos um exemplo de persistência, dignidade e honestidade.
Simone é forte e encontra no boxe uma maneira mais simples de enriquecer – pelo menos é o que ele pensa. Seu início é promissor e permite um mínimo luxo, que o leva até Nadia, uma jovem errante e melancólica que esconde seus sentimentos usando uma máscara de vulgaridade. Simone se apaixona e acaba se perdendo, permitindo que suas emoções o transformem em um “bandidinho” que rouba itens valiosos. Nadia não sente nada por Simone, o trata como um cliente e se desapega facilmente.
Rocco é adoravelmente introspectivo e gentil. Sua timidez é nítida e suas ações visam apenas o bem da família. Simone é uma espécie de herói para ele e notar suas tamanhas imperfeições o machucam silenciosamente. O protagonista é convocado pelo exército e fica um tempo afastado. Rocco doa praticamente todo o seu salário para sua mãe e amadurece. Ele acaba encontrando Nadia e aceita o convite para tomar um café. Seu olhar penetrante demonstra preocupação. Rocco percebe a fragilidade da personagem e a encoraja a viver sem medo e a escolher o tipo de mulher que gostaria de ser. É uma cena sensível, em que, pela primeira vez, Nadia é desmontada e mostra sua real face.
O protagonista retorna. Vincenzo agora tem um filho, Ciro está noivo e firme na empresa, enquanto Simone vive uma terrível sequência negativa no boxe. Suas derrotas são acachapantes e o motivo, segundo o próprio, é o sumiço de Nadia, que a essa altura estava completamente apaixonada por Rocco.
Provocado por colegas ardilosos, Simone descobre a “traição”. Visconti imprime uma série de sensações nessa sequência, provavelmente a mais marcante do filme.
Há tensão, um amor delicado e um ato de extrema crueldade por parte de Simone.
“Você é meu irmão, não vou revidar”, grita Rocco, que é espancado pelo melhor amigo e é obrigado a vê-lo estuprar sua namorada. Visconti fecha o quadro para potencializar o horror e surpreende ao utilizar planos gerais na briga, enfatizando o silêncio das ruas geladas e o ruído do trem. O protagonista poderia vencê-lo, mas está tão chocado e decepcionado, que fica em um estado de pura impotência.
A partir daí, Visconti explora o sentido da palavra irmandade e nega obviedades. Em vez de furioso e assumir de vez o namoro com Nadia, Rocco pede para a namorada dar uma nova chance a Simone, afinal, ela era o elemento chave para o equilíbrio emocional de seu irmão. É um pedido egoísta e que flerta com o machismo, contudo, é uma demonstração visceral de afeto e perdão. O amor da vida de Rocco são os seus irmãos e, mesmo chorando e desistindo da própria felicidade, ele não enxerga outra saída para o conflito. Como espectadores, ficamos impressionados e, de certa forma, decepcionados, no entanto, compreendemos a complexidade do texto de Visconti. Seu herói é uma espécie de santo, que prefere a felicidade alheia à sua própria.
O que Rocco não percebe é que ao dispensar Nadia, ele a entrega a um homem que caminha a passos largos à uma autodestruição poucas vezes vista no cinema.
A família precisa de dinheiro e o protagonista, que tinha planos de retornar à sua cidade natal, aceita uma proposta milionária do mesmo agente que dispensou Simone. Rocco despreza o boxe e, gradativamente, se torna uma pessoa fria e solitária, cuja única única preocupação é manter sua família estável, o que era impossível àquela altura. Enquanto Vincenzo e Ciro fomentam seus laços amorosos e olham para o futuro, Rocco vive uma vida financeiramente agradável, porém infeliz. Tomado pela inveja e por sua natureza, Simone se entrega ao álcool e aos jogos, se tornando uma piada.
Informado pelo agiota do valor da dívida contraída por seu irmão, Rocco fecha os olhos, num pequeno gesto de profunda tristeza e assume a responsabilidade pelo seu pagamento.
Nadia segue um trajeto similar, cada vez mais ligada a cor preta e conformada com a sua trágica existência.
Rosaria tenta segurar as pontas, sempre com o seu instinto protetor, entretanto, não faz ideia do tipo de homem que Simone se transformou. No último jantar em família, Rocco fala sobre uma superstição de sua cidade natal, na qual o pedreiro, antes de construir uma casa, faz um sacrifício para garantir que ela seja forte e sólida. A analogia é óbvia, Rocco é o pedreiro. Ele evitou o amor, aceitou o inaceitável e ganhou dinheiro fazendo algo que claramente não gostava. Diferentemente do protagonista, Ciro entende que há limites e não exime Simone de culpa, exigindo que o irmão pague por tudo.
A resposta parece simples, mas nada é simples nesse filme impregnado de reações e emoções complexas. Até onde o amor pelo seu irmão deve ir? É uma resposta individual e, ainda que pensemos completamente diferente de Rocco, não podemos culpá-lo.
A mise en scéne na filmografia de Visconti é absolutamente magnífica. Seus personagens estão milimetricamente posicionados, seja para se aproximar da escuridão, seja para expor algum sentimento. Visconti é um artista único, sua direção de atores somada aos seus close ups fazem de “Rocco e Seus Irmãos” um dos filmes mais sensíveis, poderosos e marcantes da história do cinema.
A trilha sonora é grandiosa e dita a trajetória dos irmãos, com ênfase para as de Rocco e Simone.
A fotografia em preto e branco, além de elegante, ressalta a melancolia da obra e de uma Itália em reconstrução. A escuridão vai se tornando mais evidente no terceiro ato e está diretamente ligada à Simone.
No final, duas situações, as quais não revelarei, são ligadas a partir de uma montagem paralela absolutamente sensacional.
Se tratando de um épico, os figurinos são essenciais para marcar a passagem do tempo e dar profundidade ao arco dos personagens. O simples e tímido Rocco passa a se vestir de forma elegante, contrastando com o seu estado de espírito.
Alain Delon oferece uma performance memorável. Tenho certeza de que Al Pacino se inspirou bastante no protagonista para dar vida a Michael Corleone. De certa forma, ambos vendem suas almas. Rocco deixa uma posição secundária dentro da família para ser um grande mediador. Sua inocência inicial se apaga, dando espaço a uma enorme apatia, que só é contornada nos momentos em que a família inteira está reunida. A caracterização de Delon é expressiva e sutil. Todas as suas reações são complexas, genuínas e humanas.
“Rocco e Seus Irmãos” é um verdadeiro tour de force. Uma obra prima inesquecível.
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