Assim como o nome nos créditos iniciais, os personagens de “Réquiem Para Um Sonho” se desintegram, deixam de ser humanos e se tornam apenas uma capa, uma projeção, um corpo ambulante.
Dividido em três estações do ano – Verão, Outono e Inverno -, este é um dos filmes mais angustiantes, atmosféricos, deprimentes e honestos que já assisti. É um verdadeiro tour de force a um abismo infinito, no qual sonhos são esquecidos e as existências perdem qualquer sentido.
O grande desafio da vida de cada pessoa é vencer seus medos e “Réquiem Para Um Sonho” nos apresenta uma coleção de personagens medrosos e desesperados que buscam uma saída simples para dilemas complexos e, em vez de respostas concretas, se deparam com problemas ainda maiores.
Harry está sempre roubando a televisão da mãe a fim de conseguir dinheiro para comprar drogas. Junto com seu amigo, Tyrone, e sua namorada, Marion, ele injeta os mais variados entorpecentes em seu braço e se diverte como um jovem sem limites. O verão traz um sentimento de poder, de alegria e de esperança, que é refletido na luz saturada, no uso de time lapse – Aronosfky se coloca no lugar dos personagens em diversas ocasiões – e na forma como as relações são estabelecidas.
Tyrone é uma figura leve, que pensa estar no caminho certo para conseguir um bom dinheiro, se tornar alguém e realizar o desejo de sua mãe. Marion e Harry se abraçam, correm e se beijam com muito carinho e amor. Suas palavras são sinceras e denotam uma vontade intensa de montar um futuro juntos.
São sonhadores, jovens inconsequentes, cheios de vida e aflições.
Aronofsky cria um cotidiano rígido e caótico, indicando que nada daquilo que os três almejam irá se concretizar – o estilo de vida adotado por eles não se sustentaria por muito tempo.
A outra personagem, a que acaba tomando conta de “Réquiem Para Um Sonho”, é a mãe de Harry, Sara Goldfarb, uma mulher solitária, insegura, frágil e ingênua, que tem desejos, a princípio pequenos, mas que, em sua cabeça são de uma magnitude impressionante. Ser respeitada por suas vizinhas e receber visitas frequentes do filho fariam de sua vida algo aceitável, porém é a participação em um programa de televisão que realmente mexeria com as suas emoções. A verdade é que Sara quer ser amada, quer se apaixonar e cuidar de alguém.
Aparecer na TV aparenta ser a forma mais segura de chamar a atenção das pessoas. Ela recebe uma carta do tal programa, mas não cabe no seu vestido vermelho, um que seu falecido marido adorava, então entra em uma forte dieta. No entanto, a fome e sua ansiedade urgem por um resultado repentino. Sara vai a um médico que a receita algumas pílulas para emagrecimento, dando início a um vício idêntico ao dos outros personagens.
O verão é o período das boas notícias, dos vislumbres de uma vida melhor, mais farta, alegre e organizada. O outono surge e suga qualquer energia presente na tela.
Tyrone é preso e precisa gastar todo o dinheiro para pagar a fiança, levando o trio à estaca zero novamente.
Marion passa a sofrer com a abstinência, tornando-se uma figura inquieta, agressiva e insensível, que abusa da boa vontade de Harry, que também se perde completamente, a ponto de oferecer sua namorada a um homem em troca de dinheiro.
Tyrone fica cada vez mais fora de sintonia, colocando os amigos em situações que nunca dão certo, enquanto assume um estado quase vegetativo.
Sara vai da solidão para a alucinação rapidamente. Sua casa, seu único porto seguro, se transforma em um labirinto, repleto de armadilhas e uma geladeira aterrorizante.
As cores das pílulas perdem o valor e ela começa a tomar todas ao mesmo tempo, chegando até a imaginar o tão almejado programa em sua própria sala, só que em uma versão que só poderia sair da mente de uma mulher completamente perturbada.
O inverno chega e eu prefiro não dizer muita coisa, apenas que é um dos desfechos mais desesperançosos, tristes e angustiantes da história do cinema.
Darren Arononfsky é um gênio. Seu trabalho é fascinante em todos os níveis e a sua caixa de ferramentas parece não ter fim. É impressionante, a cada minuto o diretor surpreende o espectador com uma movimentação de câmera específica ou um ângulo distorcido. Para criar um efeito caótico e de derrocada psicológica, Aronofsky prende a câmera no ator, que anda desgovernado; as lentes grandes angulares literalmente deformam o universo dos viciados; seus close ups são assustadores e conversam diretamente com seus planos-detalhe; o uso de planos subjetivos também é fundamental para fomentar essa atmosfera nebulosa e densa. Aronofsky mistura plongées – vulnerabilidade – com câmeras giratórias ao longo do filme, mudando apenas a intensidade dos movimentos, enfatizando as diferentes fases que os personagens transitam.
O trabalho do diretor é extremamente imaginativo e autoral. Boa parte das cenas concebidas por Aronofsky são representações do estado alucinatório, de ansiedade, frenesi e abstinência. A simples casa de Sara se transforma em um pesadelo, repleto de luzes piscantes, uma iluminação que lentamente se esvai e objetos que ganham vida própria. A cena da segunda consulta de Sara é a maior a prova do quão empático e expressivo Aronofsky é. Tudo gira em torno da mente conturbada da personagem, desde a imagem turva, os movimentos de câmera atordoantes e a tonalidade vocal.
Sua percepção sobre o tempo é igualmente fascinante.
Ele sabe exatamente quando deve acelerar uma sequência e quando deve optar pela câmera lenta. Cada situação pede um ritmo e Aronofsky rege seu filme com uma rara maestria.
A montagem é extremamente inovadora, principalmente pelo estilo “hip hop” de cortes, que dão ao espectador a exata perspectiva de um viciado ao se drogar. Ela é presente durante o filme inteiro, mas se torna fundamental no segundo e no terceiro terço ato, nos quais os personagens passam por suas piores fases – a rapidez dos cortes deixa a experiência ainda mais intimista. Pouco antes do desfecho, a montagem chega a um nível de dinamismo e caos inimaginável.
O design de som potencializa o vício, ressaltando barulhos que pessoas “limpas” não escutam, como o ranger dos dentes de Sara, o barulho de uma tampa se fechando e o relógio que marca uma dependência.
A direção de arte é fantástica. Os ambientes começam com um certo aspecto e terminam com outro. O local de Harry e Marion vira uma bagunça completa e é marcado por cores mortas, enquanto a casa de Sara, que enganava com as paredes verdes, gradativamente, se torna mais claustrofóbico e caótico, principalmente pela forte presença de cortinas e pela falta de cores.
O consultório médico em que ela recebe a receita parece algo fantasmagórico, tanto pelo comportamento do médico, quanto pelo vazio que existe depois da porta de entrada.
A fotografia acompanha perfeitamente as estações do ano, indo da saturação e de tons agradáveis para uma escuridão insuportável. Em determinadas cenas, a tela é tomada por um amarelo opaco, que remete a uma pessoa frágil e doente.
A trilha sonora talvez seja o ponto mais marcante de “Réquiem Para Um Sonho”. O tema principal ficará no ouvido do espectador eternamente.
O elenco inteiro é excelente – destacaria a química entre Jared Leto e Jennifer Connelly -, entretanto, é inegável que Ellen Burstyn destoa um pouco. Sua performance é delicada e gritante. Conhecemos a Sara solitária, triste e carente e acompanhamos um arco complexo, que envolve a dificuldade de encarar a realidade, dependência e a insanidade total. Burstyn está por todos os lados, cobre cada ponta de Sara e oferece uma performance, simultaneamente, relacionável, assustadora e melancólica.
“Réquiem Para Um Sonho” não é uma obra sensacionalista, é honesta e dura como deve ser, se tratando de um tema tão delicado e polêmico quanto a dependência química.
Essa é a terceira vez que assisto esse filme e sempre esqueço o quão importante e genial ele é.
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