Skip to main content

Após o espetacular “The Florida Project”, confesso que fiquei bastante ansioso para saber qual seria o próximo passo de Sean Baker. Na atualidade, existem diversos cineastas com marcas registradas, no entanto, acredito que nenhum seja tão autoral e original quanto ele. Seus filmes retratam realidades ignoradas pela maioria, foca em seres colocados à margem da sociedade – os renegados. Baker é um diretor “europeu” em Hollywood. Suas referências são perceptíveis e é fascinante ver como ele consegue ser, ao mesmo tempo, um “forasteiro” e um artista genuinamente americano.

Sua principal qualidade é a facilidade que tem em lidar com pessoas reais, trabalhando com “não atores” e extraindo, além de excelentes interpretações, uma veracidade quase documental.

Após um período em Los Angeles, Mikey está de volta para o Texas, onde tenta se abrigar na casa de sua “esposa”, que vive com a mãe. Ele chega todo arrebentado, sem rumo ou perspectiva e espera que Lexi, a quem ele abandonou para viver um sonho, o aceitará novamente de bom grado.

O combinado é o seguinte: o protagonista precisa pagar parte do aluguel e ser uma espécie de “faz tudo”. Parece simples, mas seu currículo não é exemplar e as constantes recusas o levam a um antigo serviço: vender maconha para jovens.

Mikey é um ator pornô em plena decadência – sua capacidade de se enfiar em furadas é inigualável -, assim como Lexy, que decidiu mudar de vida há bastante tempo. Ele nunca a amou, apenas enxergou o potencial de lucrar em cima de uma jovem ingênua e desorientada. Seu retorno é um ato de desespero e o protagonista não tem vergonha de se humilhar para alcançar o que deseja. A parada no Texas é provisória. Seu afeto por Lexy e Lil fazem parte de sua atuação constante, afinal, precisa dormir em algum lugar. O tráfico não é apenas a garantia de um lar, mas a oportunidade de juntar um dinheiro fácil e voltar para o lugar que foi obrigado a abandonar. Mikey está em busca de uma nova Lexy, uma jovem manipulável e bela que esteja disposta a se apaixonar e a viver uma louca aventura. Por acaso, quando vai a uma loja de Donuts, se depara com Raylee, uma garota de dezessete anos.

Sean Baker não está interessado em construir uma trama elaborada, mas um cotidiano firme e, a partir dele, elaborar um complexo estudo de personagem. O filme é imprevisível, se vale das relações estabelecidas e de situações orgânicas. Nesse sentido, o roteiro é extremamente coeso, confia em sua estrutura e não foca em convenções ou padrões, as coisas acontecem naturalmente. Não sabemos exatamente para onde estamos indo e não nos incomodamos, pois a trajetória é rica, divertida e recompensadora.

Mikey é um sujeito obcecado por reconhecimento. Um mentiroso compulsivo que circula com diferentes pessoas, contando diferentes versões da mesma história. Ele quer ser amado, bem visto por todos e nega qualquer imperfeição, não à toa, inventa para Raylee que mora em uma casa luxuosa.

Seu vizinho, Lonnie, o idolatra e o protagonista não faz esforço algum para exagerar e se colocar na posição de astro pornô, empresário visionário e homem astuto. Em Los Angeles, ele não é ninguém, em contrapartida, no Texas, na sua antiga vizinhança, dominada por pessoas que vivem um fracasso diário, Mikey é uma figura a ser exaltada e observada. Teria esse status se contasse a verdade e suas falcatruas? Provavelmente não, mas é fácil mentir para pessoas tão vulneráveis e solitárias quanto Lonnie e Raylee.

Quando Lexy começa a se afeiçoar novamente pelo protagonista, ele se torna mais frio e se afasta. Em determinado momento, ela pede a sua ajuda para recuperar a custódia do filho, que não via há muito tempo, e sua resposta é insensível e injusta. Mikey a conquista, sabe como chegar e se acomodar em um local hostil, entretanto, se esquiva de qualquer responsabilidade que não lhe interessa, denotando uma notável falha de caráter.

O relacionamento entre os dois é confuso e a culpa não pode ser estritamente atribuída ao protagonista, contudo, é ele, sem dúvida alguma, o principal canalha na história.

Seria Raylee a nova Lexy? Mikey não tinha nada a perder e a maneira como seduz a jovem, apesar de tudo, proporciona cenas divertidíssimas. Considerando que ela não tem planos para o futuro e detesta o Texas, sua retórica não poderia ser mais convidativa. Mikey começa com brincadeiras, se torna um protetor e depois o namorado. Ele omite qualquer informação sobre o seu passado, mas Raylee encontra facilmente o seu nome na internet e não o julga. Acreditamos que isso fará com que Mikey perceba que não precisa mentir e que tem opções não tão glamourosas quanto as que almeja, porém mais especiais e raras. Mas não, esse é o ponto de partida para o seu plano. Enquanto isso, segue se colocando numa posição em que se supervaloriza para Lonnie e se afasta de Lexy, que vira uma figura secundária. Raylee gosta de dar caronas para o protagonista, que mente o endereço, se escondendo até ela seguir o seu rumo. São situações rápidas e repetitivas que dizem muito sobre sua personalidade frágil. Mikey precisa estar ao lado de pessoas que inflam o seu ego e parece não compreender que não é tão diferente de Lonnie e Raylee.

Os últimos vinte minutos são especialmente magistrais e ratificam o talento de Baker, que acredita no poder da ambiguidade.

Logo no início, ele opta por um ângulo baixo em um diálogo, dando um tom documental a obra.

A estrutura rígida serve para que o espectador entenda e aprecie a realidade de pessoas que vivem nos Estados Unidos mais real que o cinema atual pode proporcionar. E, claro, para dar continuidade ao arco de Mikey, que chega tranquilo e carinhoso e, aos poucos, se acomoda e coloca suas prioridades à frente de qualquer questão.

Baker combina planos meticulosamente articulados e câmera na mão, responsável por criar uma atmosfera crua. Os zooms aparecem inesperadamente e cumprem funções narrativas distintas: humor, revelar uma perspectiva desconhecida e gerar tensão.

A montagem também está diretamente ligada à comédia, seu timing é infalível. Os cortes abruptos enfatizam o vazio de situações que deveriam ter algum valor, aumentam a imprevisibilidade do filme e são fundamentais para deixar o espectador raciocinando, evitando respostas óbvias – o final é o melhor exemplo disso.

O diretor sabe exatamente quando deve alongar um plano, expondo o desconforto de Mikey na cena em que se despede de Lexy, por exemplo, salientando a sua angústia. A câmera se aproxima do protagonista enquanto Raylee toca piano. O que passa pela sua cabeça? Baker o julga por usar uma jovem ingênua e “pura”?

Sabem por que “Red Rocket” é tão engraçado? Porque Baker não faz esforço para arrancar risadas do espectador, simplesmente entende a natureza humana e as situações casuais que circundam nosso cotidiano, inseridas brilhantemente por ele.

A direção de arte aposta na simplicidade para compor esse universo desconhecido por muitos e absolutamente real. A casa de Lexi e Lil é apertada e precária – os tons azulados potencializam essa condição -, foge do luxo americano habitual. O pequeno tamanho reforça, simultaneamente, a ideia de caos e afeto. Naquela mesinha, Lexi e Lil riem e conversam com a vizinha, mas o espaço também é palco de embates, sendo o final o mais “estrondoso”.

As residências, de modo geral, são coloridas e conversam com a energia do filme – quente e refrescante.

A fotografia impressiona pelo naturalismo, variando entre tons contrastantes, indo da frieza para o calor rapidamente. Baker nunca foge de sua proposta e escolhe situações oportunas para utilizar cores mais representativas. A luz verde que penetra os rostos de Lexi e Lil no desfecho deixa nítido que elas têm um plano e que algo passa por suas cabeças. No momento de maior medo, receio e ansiedade, Mikey é colocado em um quarto tomado pela escuridão e os feixes vermelhos na boate salientam a gradual entrega de Raylee ao jeito do protagonista.

Quem diria que Simon Rex seria capaz de protagonizar um filme dessa qualidade e dar complexidade a um personagem facilmente odiável.

Por incrível que pareça, não conseguimos detestar Mikey, o que é mérito do ator, cujo carisma é contagiante. Seu medo de julgamentos alheios e a insegurança por reconhecer seus inúmeros defeitos fazem dele uma figura relacionável, que quer ser amada a qualquer custo, obter sucesso e ser feliz. No processo, Mikey se esquece dos demais e veste uma máscara, escondendo quem realmente é. Rex é o único ator profissional no elenco e tinha a difícil missão de “guiar” os colegas e de se “misturar”. Sua composição é sensacional e Baker dá espaço de sobra para o seu show particular.

A dinâmica ágil e prazerosa está diretamente associada à sua interpretação, que, sim, está calcada em seu carisma, mas não se resume a ele. Rex é a alma cômica, sensual e dramática do filme.

Destacaria também Bree Elrod, que oferece uma performance humana em suas contradições. Lexi surge imponente e vai diminuindo, se silenciando, até o momento em que precisa agir e contra-atacar.

Não poderia deixar de elogiar a capacidade e a coragem de Baker em escrever diálogos com termos e gírias populares, sem excessos, nem polimentos – a autenticidade é palpável.

“Red Rocket” é a segunda obra prima de um cineasta diferenciado.

O que você achou deste conteúdo?

Média da classificação / 5. Número de votos:

Nenhum voto até agora. Seja o primeiro a avaliar!