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As aparências nem sempre enganam. Charlie Babbitt, com seu terno e óculos escuros, não passa de um jovem ganancioso e egoísta. Ao ser avisado que seu pai faleceu, sua reação é um simples “aham”. Eles nunca se deram bem e esse é o principal motivo por sua falta de empatia. Charlie nunca expõe seus sentimentos, não os conhece inteiramente, pensa apenas em ganhar dinheiro.

Obrigado a ir à Cincinnati para resolver pendências envolvendo o testamento do pai, o protagonista mantém distância da maioria das pessoas. Susana, sua namorada, o acompanha, no entanto, quando ela diz algo, ele mal escuta, o que é ressaltado pelo design de som. A herança praticamente inteira foi destinada a Raymond, seu irmão mais velho, o qual desconhecia até então. Seu rancor habitual se mistura com inveja e desespero, levando o protagonista a “raptar” o irmão, que é autista, a fim de renegociar a quantia deixada pelo pai.

O filme, então, assume o caráter de road movie, com Charlie lidando com as dificuldades de interagir com Raymond. É a receita para a confusão, já que estamos falando de alguém que pouco se relaciona com os humanos tidos como “normais”. Confesso que temia por um dramalhão feito sob medida para o Oscar, mas não, este é um filme honesto, que respeita seus personagens e não passa por cima de suas individualidades, sabendo a hora exata de premiar o espectador com um momento bonito.

Assim como a maioria das pessoas, Charlie não sabe o que é autismo e trata o irmão com ignorância. Raymond é curioso; ao escutar gemidos no outro quarto, vai até lá para descobrir do que se trata. Ele tem memória fotográfica e realiza de cabeça qualquer conta matemática em poucos segundos. A princípio, Charlie não está interessado nisso, muito menos nas peculiaridades do irmão, que detesta contato físico, aviões, água quente e estrondos.

Em meio a sua ganância, o protagonista é, invariavelmente, desarmado pela inteligência de Raymond e é obrigado a atender alguns de seus requerimentos, como, por exemplo, não dirigir na chuva, dormir às dez horas e assistir a um determinado programa de TV. No aeroporto, Barry Levinson usa uma placa de metal para separá-los, em um plano espetacular. Gradativamente, essa barreira desaba, dando espaço àquilo que Charlie nunca teve: uma família. Acompanhar Raymond é como cuidar de um recém-nascido – pode até ser exaustivo, no entanto, trata-se de um momento raro, um presente inestimável.

Os obstáculos e as chatices se transformam em intimidade e cotidiano. O protagonista não só passa a respeitar as fragilidades de Raymond, como também compreende o significado daquela jornada, cujo intuito inicial era um pretexto para algo maior. Nesse sentido, a estrutura do road movie é fundamental, focando em situações simples e significativas sem perder a fluidez.

Essa não é apenas a história de um jovem que é despertado para a vida e relações profundas, mas também a de um adulto especial que, pela primeira vez, é exposto a experiências e prazeres importantes. Raymond não clama por compaixão, isso parte de seu irmão. O roteiro não omite a verdade, não é fácil estabelecer contato com um autista – o falatório é enlouquecedor. Levinson fecha o quadro constantemente, chegando a colocar os dois numa minúscula cabine telefônica, a fim de ressaltar a claustrofobia de Charlie, as fobias de Raymond, a crescente intimidade e o repentino caos.
O cineasta, a partir de planos abertos da estrada e da paisagem, cria uma rima e um interessante contraste, dando ao espectador um respiro, ratificando o teor da jornada e a evolução dos personagens. A lógica visual responsável por introduzir Raymond no carro do protagonista é repetida quando ele finalmente assume o volante – um desejo seu. Dessa forma, Levinson estabelece outra rima, marcando o início da relação e o início da confiança mútua.

A cena no Casino é especialmente incrível. Os cortes e os movimentos de câmera, além de traduzirem o vício e a sedução pelo jogo, combinam com a trilha sonora que, por sinal, é um dos pontos altos do filme. Eles dançam, eles usam ternos parecidos… eles são irmãos.

O design de som se mostra empático em relação a Raymond, reforçando o incômodo gerado por certos barulhos. Levinson e seu montador também sabem a hora de nos colocar sob a perspectiva do autista. No Casino, Raymond é abordado por uma acompanhante de luxo e os planos-detalhe reforçam o seu fascínio pela moça. Ele se prepara para o encontro, não quer decepcioná-la. Esse tipo de sutileza está por todos os lados e é mais uma prova do cuidado dos realizadores. O filme termina numa nota otimista sem duvidar da inteligência do espectador. Alguns “até logo” são baratos e bregas, esse não é.

Tom Cruise atravessa um arco considerável, indo de um jovem vazio, raivoso e insensível para um adulto que reconhece suas limitações e se emociona com um simples prato de panquecas. “Teria sido bom conhecê-lo por mais de seis dias”. Nenhum ator de sua geração ofereceria uma interpretação tão cativante e crível.

Dito isso, o grande destaque é Dustin Hoffman, que, merecidamente, venceu o seu segundo Oscar. Palavras não fazem jus à sua performance. Sabem o que Al Pacino faz com os olhos em “Perfume de Mulher”? Hoffman faz aquilo com o corpo inteiro. Os trejeitos, a entonação vocal, os gestos específicos, a velocidade na fala, as mudanças bruscas de comportamento, o rosto imutável, porém expressivo…

“Rain Man” é um raro caso de uma obra prima feita para conquistar prêmios.

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