“Sweet and Lowdown” é mais uma pérola esquecida na brilhante filmografia de Woody Allen. Assim como fez em “Zelig”, o diretor brinca com a narrativa utilizando o formato de mockumentary, ou seja, um documentário sobre uma personalidade fictícia. A montagem é excepcional nesse sentido, dando fluidez ao filme, que ganha bastante com os relatos dos entrevistados.
As obras de Woody Allen sempre tiveram uma forte veia cômica, seu texto é repleto de sarcasmo e essa característica é notável em “Sweet and Lowdown”, no entanto, também é possível enxergar este filme como um dos estudos de personagens mais melancólicos de sua carreira.
Emmet Ray é um guitarrista talentosíssimo, o segundo melhor do mundo, atrás apenas de Django Reinhardt. Ele toca em bares, seus chefes o admiram e o público chora com suas melodias. O protagonista tinha tudo para ser alguém importante e pensa que está no caminho certo. Dito isso, Emmet é irresponsável, bêbado, mal-educado, misógino, egocêntrico, cleptomaníaco e medroso. Ao longo do filme, o que mais vemos são relatos empolgados sobre o seu talento e a sua capacidade e acaba sendo triste acompanhar a trajetória de um homem que se autossabota a cada instante. Ele falta aos shows, aposta o que não tem, seduz mulheres, mas termina as noites sozinho. Emmet diz que não pode se comprometer, afinal de contas, é um artista e precisa de espaço. Sua vida é assim, feita de desculpas esfarrapadas, que impedem o seu sucesso, freando o seu ímpeto de se arriscar.
Emmet não parece sentir algo por nenhuma mulher, ao menos até surgir Hattie, uma jovem muda que, diferentemente do protagonista, é meiga, sensível e doce. Allen não poderia ter escolhido um casal melhor. Um homem destrutivo, apesar de dotado de um talento espacial e uma mulher adorável, embora acometida por uma limitação física. As interações entre os dois são fascinantes exatamente por esse contraste e pela sua crescente intimidade. Emmet, muitas vezes, é grosso sem intenção e Hattie passa a compreendê-lo. Ela sabe que presente dar no dia de seu aniversário e como desmontá-lo, mesmo que por apenas alguns segundos. A princípio, o que encanta o protagonista é a facilidade com que ele a leva para a cama. “As outras costumam resistir”. É uma cena engraçada, que ressalta a solidão, a pureza e a inexperiência de Hattie.
O protagonista desconhece a palavra empatia e tem muita dificuldade em expor seus sentimentos. Nem Emmet sabe o que se passa em seu coração. Na verdade, ele não está em seu peito, mas em suas mãos. Seu violão chora algumas melodias, seus olhos e feições exprimem isso. Emmet não seria capaz de falar que ama alguém, nem perguntar como foi o dia de uma pessoa especial e é por isso que ele não é o melhor guitarrista do mundo, nem feliz. Sua vida se resume a pedaços, situações que poderiam ser belas e perfeitas e acabam sendo vazias, incompletas e melancólicas. O protagonista é impulsivo e insensível a ponto de abandonar Hattie no meio da madrugada e, dias após, se casar com uma mulher que mal conhece. São tentativas descabidas, erros de um homem que não enxerga o óbvio. Sua estrela dourada não se sustenta, Emmet não a encara com seriedade, não percebe que não é Blanche ou Hollywood que o farão feliz, mas suas belas composições e o afeto genuíno de Hattie. Seus hobbys dizem muito sobre sua personalidade. Afinal, que espécie de homem se interessaria por atirar em ratos e observar trens?
A espontaneidade pode ser considerada uma qualidade, porém não para Emmet. O mesmo não se aplica a Hattie, que diz tudo o que quer e pensa com o seu rosto, que esbanja sentimentos que o protagonista jamais poderia expor. Ela é muito mais expressiva. A única voz que diz algo em Emmet é a das cordas de sua guitarra. O protagonista não sabe como lidar com declarações, muda de assunto e se afasta com grosserias. Reparem que sempre temos acesso às reações de Hattie, salvo no final da história, pois, só então, o protagonista compreende o que ela significava, o que havia perdido e o que nunca mais teria. É o tipo de sutileza que os grandes diretores conferem às suas obras e Woody Allen, famoso por seus grandes roteiros, é um dos cineastas mais sensíveis de todos os tempos. Não pensem que o desfecho apela para saídas simples e que Emmet se torna um ser humano razoável. Entretanto, finalmente percebe algo importante, o que fica evidente quando ele esmaga o seu, até então, bem mais precioso. Os entrevistados atestam que, neste momento, a sua música nunca esteve tão delicada e perfeita e depois disso, ninguém nunca mais o viu.
Como mencionei, o filme é repleto de diálogos dignos de boas risadas e sequências que só poderiam sair da mente criativa de Woody Allen. A que mais chama a atenção, sem dúvida alguma, acontece quando Emmet persegue sua esposa, Blanche, que, supostamente está tendo um caso com um mafioso. Cada entrevistado conta a sua versão da história, cada qual com um detalhe engraçadíssimo. Os relatos tornam o guitarrista em uma espécie de lenda, alguém difícil de se decifrar e a impressão, ao assistir ao filme, é que pude conhecê-lo, provavelmente melhor do que ele próprio.
Apesar de todos os seus graves defeitos, Emmet Ray é um ser humano cujo passado é duro e triste. O protagonista fala da morte do pai e, principalmente da voz de sua mãe, com dor, circunstâncias essas que ajudaram a fomentar sua personalidade tóxica. Emmet é frágil como a grande maioria, a diferença está na forma que ele lida com seus dilemas.
A reconstituição de época é absolutamente fenomenal. A fotografia em tons pastéis consegue, ao mesmo tempo, trazer uma espécie de nostalgia e retratar com fidelidade o período da grande depressão americana. Os bares são marcados pela presença de uma luz forte e, tanto as mesas, quanto as decorações dão à obra um alto grau de autenticidade. O mesmo pode ser dito dos figurinos, que pertencem à década de trinta.
Samantha Morton dá um show. Sua performance é encantadora, desde a forma tímida como ela surge, até as expressões faciais que denotam, com uma honestidade tocante, o que a personagem sente. É quase um clichê dizer que a atriz faz muito com pouco, mas essa é a pura verdade.
Já Sean Penn, oferece uma atuação digna de Oscar, repleta de nuances, um trabalho vocal impressionante e uma habilidade tremenda para lidar com o violão. Seu personagem tenta dominar os ambientes em que está e as mulheres com quem sai. Emmet quer ser o dono de tudo, inclusive do mundo, e o ator consegue transitar brilhantemente entre essa “firmeza” e a fragilidade inerente ao protagonista. Seria fácil odiar Emmet Ray, mas Penn construiu em um ser complexo e contraditório.
O que você achou deste conteúdo?
Média da classificação / 5. Número de votos:
Nenhum voto até agora. Seja o primeiro a avaliar!