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O grande Roger Ebert avaliava os filmes que escrevia com estrelas. As obras de maior destaque, além de receberem as quatro estrelas, tinham o selo de “Great Movie” – o que resultou numa maravilhosa série de livros. Eu não dou nota nas minhas críticas, no entanto, caso utilizasse o mesmo sistema de Ebert, “Parenthood” certamente estaria na galeria de “Great Movies”.

Este é o trabalho mais ambicioso e pessoal da carreira de Ron Howard. Não é nada simples formar um painel familiar tão diverso, engraçado e empático. Na superfície, “Parenthood” é uma comédia impecável; no fundo, é um estudo profundamente humano sobre seres que fazem o possível para serem bons pais.

Gil tem três filhos. Kevin, o mais velho, tende a histeria, está sempre preocupado e nervoso. A diretora da escola alerta para possíveis problemas psicológicos e Gil decide colocá-lo na terapia. Ele não sabe de onde surgiram tais questões e tem arrepios só de pensar em não ser uma boa figura paterna. Um simples jogo de beisebol infantil ganha contrastes homéricos e a montagem nos direciona à sua imaginação. O êxito de Kevin acarretará homenagens em futuros discursos, além de um orgulho natural; em contrapartida, a derrota transformará seu filho num serial killer altamente requisitado. Gil quer a tranquilidade, quer ser promovido no emprego e ser recebido pela família sem crises.

Seu desejo de ser um bom pai é tanto, que ele acredita piamente que uma vitória no beisebol e uma festa de aniversário bem-sucedida serão suficientes para livrar Kevin de suas aflições. Se fantasiar de cowboy e encher balões em formatos estranhos são esforços louváveis, mas não impedirão seu primogênito de ir ao terapeuta. Em maior ou menor grau, os filhos são versões dos pais. O nervosismo de Kevin ainda corrói Gil, que pede demissão de supetão por não aprovar uma decisão do chefe e cria cenários a todo instante. Seu maior medo é olhar no espelho e se deparar com a sombra de Frank, seu pai.

Suas maiores crises e angústias decorrem da falta do afeto paterno; todas as suas ações visam uma total dissociação e, nessas tentativas, ele acaba se precipitando. Em um momento delicado, Gil afirma que três filhos são suficientes e, pouco tempo depois, em um raro diálogo íntimo, Frank diz a mesma coisa. É uma corrente impossível de ser freada, em que, no melhor dos casos, o mais jovem se torna uma versão “superior”.

Karen, esposa de Gil, não trabalha e faz o possível para manter a casa em ordem. Diferentemente do marido, ela gosta de turbulências, entende o caminho da montanha-russa da existência e, em vez de se preocupar com uma nova gravidez, olha para o lado positivo. A insegurança é um mal comum a todos os personagens, inclusive à Karen, que, ao escutar a cunhada falar sobre uma inusitada aventura sexual, tenta surpreender o marido. O resultado não é dos melhores e a montagem, com seu timing impecável, eleva a comicidade de uma situação que poderia passar despercebida.

Gil vive num mundo de obrigações, não de opções. Ele subestima os deveres da esposa e se cobra demais, a ponto de quase nos esquecermos do excelente pai que é. Como Frank diz, o serviço de paternidade nunca acaba e nunca é inteiramente bem feito. A imperfeição rodeia o cotidiano e se torna perfeita quando um jogo de beisebol conserta um terrível dia de trabalho.

Helen tenta acompanhar seu filho mais novo e sabe que não controla mais a filha, que se relaciona com um jovem de pretensões duvidosas. Seu marido a abandonou, os brinquedos sexuais são seus únicos companheiros fiéis e o diálogo é inexistente em sua residência. Garry está passando pela puberdade e nega qualquer contato minimamente carinhoso. Julie, por sua vez, vive um romance que oscila entre a imaturidade e a vida adulta.

Helen, a princípio, parece uma figura frágil e indecisa, no entanto, gradativamente, percebemos que se trata de uma mulher forte e decidida a entender as diferentes fases e anseios dos filhos. Se Julie quer se casar com Tod, ela a apoiará e será incisiva quando a filha der para trás num momento crítico da relação; se Garry precisa de uma figura paterna para entrar no eixo, ela buscará um homem sensível, capaz de satisfazê-la. O cuidado na composição de Dianne Wiest fica nítido em reações específicas. Sua incredulidade ao descobrir que será avó e a rápida mudança no tom de seu discurso quando Julie foge de casa são marcas de uma atriz exuberante.

Susan é casada com Nathan. Na introdução do casal, ele está dando uma lição na filha que, pelo teor da conversa, nos leva a crer se tratar de uma jovem adulta prestes a se formar. Não, é uma garotinha fofa. Nathan monta um programa para fazer de Patty um gênio precoce. Ela raciocina incessantemente, decorou a tabela periódica, diversas raízes quadradas e, ao se deparar com crianças brincando como crianças normais, não entende a graça. Nathan está criando um computador, não uma menina. Eventualmente, Patty será apenas vazia, insuportável e solitária.

Ela não frequenta uma escola, desconhece ferramentas básicas de socialização. Nessa gincana neurótica, Susan, que não aceita a mera função de engrenagem, pede o divórcio. Nathan quer ser excepcional e, no processo, perde o brilho e a empatia que, um dia, deixaram sua esposa excitada. Um filho não é um projeto científico, demanda afeto e uma capacidade de assimilar as qualidades ao seu redor. Rick Moranis, naturalmente engraçado, oferece uma de suas melhores performances, combinando um exagero cômico com a insegurança de um pai que, na verdade, só quer o melhor para sua filha.

Por último, temos Larry, um delinquente que depende do pai para sobreviver. Ele surge do nada, quando lhe convém pedir dinheiro. Por algum motivo, Frank sempre o tratou como o filho favorito e, até hoje, os planos e problemas do caçula arrancam um sorriso de seu rosto. O contato prolongado abre os olhos do patriarca, que percebe quão patético e imaturo Larry é. Seu retorno é a verdadeira segunda chance de Frank, que repensa seus métodos de educação e fica com o neto para corrigir os erros do passado.

A abordagem convencional de Ron Howard garante que todos os personagens tenham seu devido espaço e que os atores desenvolvam caracterizações complexas. O desfecho é especialmente bonito – a apreciação da harmonia familiar –, todavia, a cena que sintetiza o filme é aquela da peça de teatro. O design de som e a câmera trêmula emulam os loopings da montanha russa agonizante de Gil. No fim, após a tensão, felicidade e emoção tomam conta dele, que abraça Karen.

Steve Martin é quem proporciona ao espectador as maiores risadas e as principais reflexões. Não consigo imaginar outro ator no papel de Gil.

“Parenthood” é a obra prima definitiva da carreira de Ron Howard.

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