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“O recreio é um prêmio, não um direito”. “Vou lhe mostrar quem faz a lei aqui”. Essas são frases proferidas pelo professor de Antoine Doinel, que em nenhum momento se comporta como um educador. Seu maior prazer é flagrar seus alunos fazendo algum tipo de bobagem, podendo, assim, exalar sua tirania. O protagonista costuma ser o “escolhido” para os castigos, e seus pais, ao invés de defendê-lo, corroboram com medidas nada eficientes.

Os adultos em “Os Incompreendidos” são falhos e irritantes. Chegam a admitir que foram como Doinel no passado e seguem errando, se colocando num pedestal moral e comportamental inexistente. A mãe do rapaz é ríspida, incapaz de demonstrar carinho e parece odiá-lo. O pai, em contrapartida, é uma figura mais leve, até que algo aconteça e seu curto pavio exploda. Doinel é um produto de seu ambiente; não confia, com razão, em seus superiores e falta a aula, pois é constantemente humilhado pelo professor. “Ah, eu minto de vez em quando. Às vezes eu falava a verdade, e mesmo assim eles não acreditavam, então preferia mentir”.

Sua casa é apertada, seu quarto é minúsculo, seu pijama é um trapo rasgado e, na falta de lençol, o protagonista se cobre com um saco de dormir. René, seu melhor amigo, é quem o acompanha nas sequências mais divertidas e prazerosas do filme. Eles não precisam de muito, apenas correm por Paris e vão ao cinema. A trilha sonora lúdica e os planos gerais ressaltam a importância da capital francesa, que, de certa forma, assume o papel de confidente de Doinel, que só se sente livre e feliz nas ruas. Em um de seus passeios secretos, ele vê sua mãe beijando outro homem – a mesma mulher que lhe dá lições de moral e bons costumes…

Nas raras situações em que seu pai conta uma piada, Doinel ri, na esperança de que as coisas melhorem. O único momento em que o protagonista é tratado como um filho, se dá quando decide fugir de casa e passa a noite na antiga gráfica do tio de René – o ponto a que precisou chegar para ser acolhido. A mãe se abre, compartilha segredos e oferece sua cama. Eles vão ao cinema e, pela primeira vez, se relacionam como uma família. Doinel estava acostumado com a troca de farpas entre seus progenitores, o afeto era uma novidade bem-vinda e, infelizmente, efêmera.

Truffaut mantém a câmera ativa, contemplando a energia e a rebeldia juvenil, todavia, também se mostra atento a detalhes importantes. Os lapsos de alegria, a despreocupação, o nervosismo e a aceitação estão no rosto de Doinel, minuciosamente observado pelo cineasta. Antes de vermos sua mãe traindo o marido, já suspeitamos de algo pela maneira como ela se arruma diante ao espelho. Truffaut é um grande conhecedor da natureza infantil – seu filme é essencialmente sobre isso. Uma das sequências que melhor encapsula sua sensibilidade é aquela em que os alunos, em meio a uma aula de educação física ao ar livre, gradativamente, se dispersam do professor, que, no fim, corre sozinho.

A camaradagem e a imaturidade são sintomas de uma boa infância, de algo que esses personagens, no futuro, se lembrarão com carinho. As carteiras de madeira combinam com a rigidez de um “mentor” que não tem nada de valioso a ensinar. Predisposto a impressionar a todos, Doinel se prepara para uma importante redação lendo Balzac. O texto fica em sua mente e, sem qualquer intenção, ele praticamente repete as palavras do célebre escritor francês. Em vez de tentar entender o ocorrido e elogiar seu aluno pela tentativa, o professor se vê no direito de, mais uma vez, destruir sua autoestima.

Doinel e René lutam contra o sistema. Sem opção, os amigos planejam furtar e vender uma máquina de datilografar. Essa conversa se dá durante um teatro de marionetes, salientando a ingenuidade dos incompreendidos. O protagonista é levado pelo próprio pai à delegacia. O progenitor admite não saber mais o que fazer – por que o trouxe ao mundo então? A grade e a escuridão evidenciam a solidão de um garoto ignorado por aqueles que deveriam educá-lo e que sequer demonstram curiosidade em ouvi-lo.

No centro de observação (leia-se, de punição), descobrimos que, antes de completar oito anos, Doinel viveu numa creche e, depois, com sua avó, que impediu que a filha cometesse um aborto. No último diálogo que tem com sua mãe, ela passa um recado de seu pai: “ele pediu para dizer que não tem mais interesse em você”. A cena final é uma das mais icônicas da história da sétima arte e já foi homenageada diversas vezes. Na sua fuga, o protagonista se depara com uma praia, que simboliza o horizonte de liberdade e possibilidades que sempre buscou.

A Nouvelle Vague rompeu com o tradicionalismo, foi um sopro de ar fresco que influencia artistas até hoje. Colocar uma criança no centro da trama e questionar as instituições – escolas, a família e o casamento – são marcas de um movimento inovador e de um cineasta que conhecia a alma juvenil e a hipocrisia adulta. A narrativa concebida por Truffaut é deliciosa; o contraste entre os espaços claustrofóbicos/planos fechados e as ruas parisienses é autoexplicativo.

Jean-Pierre Léaud oferece, talvez, a melhor performance infantil de todos os tempos. Seu leve sorriso ao ser perguntado se já dormiu com alguma mulher e tristeza contida ao relatar o descaso dos pais não são sutilezas comuns a um ator de somente catorze anos.

“Os Incompreendidos” foi o primeiro marco da Nouvelle Vague.

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