“Meu pai é um mentiroso”, diz Max à professora, após ser perguntado sobre sua profissão. Fletcher Reede é um grande canalha; um advogado que está disposto a usar qualquer brecha e argumento falacioso para se dar bem. Narcisista, ele gosta de aparecer e está em busca de alcançar a condição de sócio no escritório. Seus clientes, em suma, cometeram algum delito ou estão equivocados. Seu papel é, através de sua retórica sedutora e apelativa, convencer os juízes de que o errado é certo. A mentira faz parte da interpretação diária, desde elogios a pessoas que ele despreza, até comentários que buscam atenuar a insegurança alheia, como, por exemplo, a de um colega acima do peso.
Nesse cotidiano corrido e movido por ganância, Fletcher disponibiliza pouca atenção ao filho, que o admira imensamente. Sempre que estão juntos, os dois se divertem e aparentam ter a melhor relação possível entre pai e filho; todavia, as coisas não são bem assim, não à toa, Audrey, mãe de Max, optou pelo divórcio e começou a sair com Jerry, o protótipo do sujeito enfadonho e certinho. “Jerry, divirta-se com a minha esposa”, brinca Fletcher, que não perde a chance de ser sarcástico. Após faltar ao aniversário do filho, frustrando-o novamente apenas para satisfazer seus desejos carnais, Max faz um pedido: seu pai não pode mentir por 24 horas.
“Já tive melhores”, responde o protagonista, num tom de absoluta serenidade, após ter passado a noite com Miranda, uma potencial parceira de trabalho.
-Todos são tão gentis.
-Bem, é por causa dos seus peitos grandes.
Similar ao que acontece com Phil Connors em “Groundhog Day”, só que sem a mesma densidade no desenvolvimento do arco dramático, Fletcher atravessa diferentes estágios até perceber que não consegue mais usar o seu artifício mais precioso: a mentira. Ele começa estranhando as próprias palavras, passa por momentos de insanidade e luta para encontrar maneiras de burlar o feitiço “imposto” pelo filho. Após ser cumprimentado pelo juiz, o protagonista faz um breve comentário sobre seu dia anterior: “Estou irritado com um episódio ruim de sexo que tive ontem à noite”. O outro lado da moeda o leva a conclusão de que, acima de qualquer promoção, ama Max e Audrey, que está quase aceitando o pedido de casamento de Jerry.
-A professora disse que a beleza verdadeira vem de dentro.
-Isso é algo que pessoas feias dizem.
Fletcher pede ao filho para desfazer o pedido, o que é impossível, já que partiu de um desejo genuíno de uma criança que sente falta de seu melhor amigo. Em outra sequência memorável, o protagonista é apresentado ao chefe do escritório e é obrigado a falar um pouco sobre cada um dos sócios. O show de honestidade, que poderia ser visto como uma barbaridade, é motivo de risadas. “É disso que o escritório precisa: irreverência”, afirma o patrão para o “ex-mentiroso”, que retruca: “Ótimo. Depois nos vemos, imbecil”. Jerry representa o oposto de Fletcher; uma resposta de Audrey ao descaso do marido, que, por mais irresponsável que seja, ainda ama.
O roteiro acerta no ritmo e a trama, apesar de caminhar por terrenos conhecidos, é prazerosa de se acompanhar. A quantidade de bons diálogos é assombrosa – o que é notável pelas várias citações que fiz – e o arco do protagonista, considerando o teor e o intuito da obra, é bastante satisfatório. “O Mentiroso” é uma comédia; seu principal intuito é proporcionar gargalhadas ao espectador e isso é alcançado com êxito. O clímax é coerente com a gradual insanidade de Fletcher e conta com algumas pitadas de tensão – não que o espectador fique preocupado com o protagonista, mas a situação é extrema.
Dito isso, o responsável pelo sucesso do filme é, estritamente, Jim Carrey. O carisma inicial se confunde com seu egocentrismo. Quando as coisas mudam de figura, a primeira reação é um susto. Aos poucos, Fletcher age como se estivesse possuído por alguma entidade, com direito a caretas que somente Carrey sabe fazer. Mentir sobre a cor de uma caneta nunca foi tão penoso. Da falta de controle sobre si, o ator parte para o cansaço e seus trejeitos ficam cada vez mais intensos. Seu ápice reside, muito provavelmente, na cena em que protesta contra as próprias declarações, confundido a todos no tribunal. Carrey mergulha em seus papéis de tal forma, tornando-o um intérprete visceral e inimitável.
“O Mentiroso” é uma das grandes comédias da década de noventa