“O Filme Da Minha Vida” inicia com imagens belíssimas e uma narração aprazível. Essa mistura se repete algumas vezes e me remeteu às obras de Terrence Malick. Selton Mello extrai tudo o que as estonteantes paisagens do sul brasileiro poderiam lhe oferecer, mas não se limita a planos gerais, muitas vezes a beleza de um determinado momento ou dos próprios atores é potencializada pelo ambiente.
Tony vivia uma vida tranquila e feliz ao lado de seus pais. Cresceu, foi estudar numa cidade grande e quando voltou encontrou sua mãe, Sofia, sozinha e abatida. Sem respostas pelo sumiço de seu principal mentor, o protagonista é apresentado ao espectador como um jovem perdido, cuja sensibilidade é notável, porém tímida. Filho de um francês, Tony tem uma aparência europeia e, mesmo sendo um professor, tem muito o que aprender. O filme de Mello é sobre amadurecimento, crescer com o que é possível, aproveitar o que a juventude oferece e viver a vida sem olhar muito para o relógio, já que é justamente ele que conta os nossos dias.
Tony precisa cuidar da mãe, mas também de si. Ir para a escola de bicicleta o machuca, pois remete a lembranças da infância, quando seu pai o ensinou a dar as primeiras pedaladas.
O protagonista é um excelente observador, romântico em suas idealizações e ingênuo ao pensar na realidade. Sua única referência, Paco, amigo da família, é um roceiro “raiz”, simples e direto em suas colocações. Ele faz uma analogia entre um homem e um porco e sabe que está mais próximo do animal. Seu pedido por um abraço para uma prostituta conhecida é um reflexo de sua existência previsível e solitária. Paco não elogia Tony por suas qualidades, mas por ter um emprego e uma vida “digna”. Ele não é o pai do protagonista e Selton Mello o interpreta com muita segurança, dando toques de humor à trama com seu jeito típico, fazendo com que o espectador sinta pena do personagem e que fique com uma pulga atrás da orelha após uma importante revelação.
Esperamos certos cuidados de uma obra que se passa na década de sessenta e uma coisa que chamou a minha atenção foi a forma cool e atraente que a juventude é retratada. Movimentações elegantes de câmera, close ups e cortes secos acompanham um cotidiano baseado em fumar, conversar, flertar e se exibir. As roupas, os rostos e a sensação de um tempo que ficou para trás são muito bem pontuados pelo diretor, que trata seu protagonista com uma comovente empatia. Certas dores são reveladas gradativamente e sabemos perfeitamente o que encanta Tony – o seu olhar é o nosso. Deixando o trauma um pouco de lado, ainda que desajeitado, ele decide que precisa se apaixonar e não sabe qual das irmãs Madeira deseja – um simples exemplo do quão perdido está.
Vê-las dançando desperta uma série de sentimentos e em nenhum momento temos acesso ao que de fato acontece naquela cena, apenas a uma coleção de imagens oriundas de uma mente fértil e bagunçada.
Sua melancolia romântica fica explícita nas constantes idas ao cinema para assistir “Red River”, de Howard Hawks. Os filmes são a realidade dos sonhadores e a frequência denota um certo desespero, uma ânsia por um amor que parece, ao mesmo tempo, longe e distante. A obra exibida ainda oferece uma inteligente ligação entre Tony e seu pai, que acarreta o inevitável reencontro.
Para se apaixonar, o protagonista acredita que precisa ter algum tipo de experiência, então implora para Paco o levar até a “Zona”, o famoso bordel. A sequência, além de engraçada, pela timidez de Tony, é fundamental para o seu arco e evidencia uma triste situação – sua “amiga” claramente gostaria de ser algo a mais e se emociona com palavras de conforto.
A perda da “secreta” virgindade, o reencontro com o pai e o motivo pelo sumiço fazem de Tony um jovem muito mais seguro e certo de si, sem perder sua essência. Ele define estratégias, se apaixona e abandona a sua posição de mero observador. A forma como encara o “retorno” do pai é uma prova de sua maturidade – não o destrata, admite a saudade, sorri, porém não esquece o que aconteceu. Sua primeira reação é obviamente conturbada, mas as coisas vão se ajeitando na medida em que Tony se acerta consigo. Mello não foca no rancor e sim no afeto.
A outra grande questão é como informar a mãe e ele faz isso com uma delicadeza impressionante, levando-a a uma sensação de esperança, não de traição. Sem falar no possível fim de sua relação com Paco, que apresenta um “novo” protagonista. Sua maneira de dançar, de se envolver com Luna – até então um sonho distante – e de se comunicar com Petra – irmã de sua namorada – são marcas importantes de um arco poderoso.
O pai do protagonista diz que os finais são sempre bonitos. Sinceramente, não concordo, porém, aqui, sua frase não poderia ser mais valiosa.
Selton Mello merece elogios por sua elegante condução. O diretor enaltece a força do cinema, não só pelo fascínio de Tony, mas por retratar com exatidão a sensação ao sair de um bom filme, através do uso de câmera lenta. Percebam que após a exibição de “Red River, Paco, que não entendia a graça da sétima arte, parece mais baixo que Tony, que, por dentro, se sente maior e desliza suavemente.
Adivinhem onde o protagonista beija Luna pela primeira vez…
Percebam que o sexo com a prostituta é mostrado pelo espelho, salientando a natureza “experimental” daquela relação. Os recorrentes close ups aproximam os personagens e também enaltecem as poderosas emoções e reações de Tony. Mello realça a beleza jovial, intocável, e, claramente, a compara às hipnotizantes paisagens do sul brasileiro.
Numa sequência, quase entre familiares – Paco, Tony e sua mãe -, o diretor alonga o plano, ressaltando sua raridade e importância.
Seu cuidado não para por aí, ele realiza algumas rimas interessantes, como, por exemplo, uma chuva torrencial justamente no momento em que o protagonista descobre que o pai nunca voltou para a França.
A maravilhosa fotografia, opta pelo cinza, pela fumaça e uma neblina de incertezas. A beleza do filme é melancólica e é fascinante observar que, no decorrer da trama, os tons se alteram e no último plano, simbólico por fechar o arco, não só a iluminação é radiante, mas o olhar de Tony. A luz é também usada para destacar algum personagem, seja por sua importância, seja pelo sentimento do protagonista.
O vermelho tem uma conotação sexual – bordel – e de extrema dor, no entanto, não aparece a todo instante, o que é ótimo. Não precisamos que as coisas sejam incessantemente reforçadas.
A direção de arte é responsável por uma excepcional reconstituição de época, que leva qualquer espectador – não importa a idade – aos anos sessenta, fazendo com que se sinta parte daquele período. O cinema, o trem e o bordel dão uma autenticidade admirável ao filme. Os tons suaves e agradáveis da já mencionada fotografia ajudam na concepção desse universo. O trabalho pacato da mãe de Tony é caracterizado sutilmente pela presença da cor verde numa estante, mesma cor da roupa da personagem – como se não houvesse novidades, tudo é igual. Da mesma forma, o suéter do protagonista ressalta sua melancolia e incerteza.
A montagem abraça as memórias e é fundamental para a contextualização de certos detalhes. A cena do pai ensinando o filho a andar de bicicleta, a que os dois fazem um “acordo” envolvendo uma moto e aquela em que Sofia fecha os olhos e relembra os momentos amorosos com seu marido, são especialmente marcantes.
As escolhas musicais não poderiam ser melhores. “Hier encore”, de Charles Aznavour, é o tema principal. A letra fala sobre juventude, a efemeridade da vida e a beleza que devemos aproveitar enquanto temos tempo.
Com a exceção de Bruna Linzmeyer, que não consegue agir como um ser humano, praticamente dizendo: olhem para cá, isso não é a realidade, apenas uma encenação, o elenco é excelente.
Bia Arantes faz de Petra uma moça quieta e sedutora, cujo olhar é capaz de cegar qualquer homem. É exatamente aí que reside sua “tragédia”: a beleza da juventude, seu grande e único troféu, se esvai a cada minuto.
O principal destaque é Johnny Massaro, que encarna Tony como um jovem sensível, romântico, perdido e triste. Os momentos em sua trajetória são perfeitamente sinalizados e o ator, que vive um personagem em pleno amadurecimento, traz a cada estágio de seu arco uma nova impressão, sempre genuína e palpável.
“O Filme Da Minha Vida” é uma obra absolutamente espetacular.
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