Alan Parker não perde um segundo sequer para dizer sobre o que o seu filme é. O primeiro plano apresenta dois bebedouros: um para os brancos, outro para os negros. A segregação por si já é um absurdo, no entanto, o que mais chama atenção é a diferença estética entre eles.
As chamas dos créditos também são bastante nítidas, assim como o uso da cor vermelha. Esse é um filme caótico e brutal, repleto de sutilezas que o tornam ainda mais difícil de assistir.
O design de som amplifica o vazio das estradas. Não há ninguém ali e quando surge um carro da polícia, ao invés de tranquilidade, sentimos medo. Eles estão em maior número e, infelizmente, é assim que funciona no Mississipi. Os rostos dos assassinos mal aparecem, vemos apenas seus corpos encobertos pela neblina, que denota uma clara ameaça.
Três ativistas são mortos e o FBI entra em cena para encontrar os corpos e entender o que acontece naquela região.
Os protagonistas surgem à luz do dia, eles são os heróis da história.
Anderson e Ward não poderiam ser mais diferentes. O primeiro é engraçado, impulsivo e direto; já o segundo, é sério, contido e profissional.
A dinâmica entre os dois é muito bem estabelecida e desenvolvida ao longo da trama. Na maioria das vezes, eles discordam, contudo, é nítido que o respeito é mútuo.
O xerife local e seus subordinados tratam o caso como uma banalidade e reagem sarcasticamente.
Parker não economiza nas cenas de violência e algumas delas, sinceramente, são praticamente impossíveis de se assistir. A montagem, através de cortes rápidos, intercala os atentados com a chegada de reforços, criando um senso de urgência.
O roteiro deixa claro que o preconceito é algo que se aprende, ninguém nasce assim. Há vários depoimentos de moradores, que realmente pensam que os negros são seres inferiores e falam isso com uma naturalidade assustadora. Em determinado momento, a personagem de Frances McDormand diz que as crianças aprendem na escola que a segregação é algo necessário e Parker deixa nítido que vários jovens vão obrigados aos comícios da KKK. É algo que deve ser cortado pela raiz, mas como? Talvez por isso “Misssissipi Burning” seja um filme tão triste. Talvez seja porque os maiores culpados são os policiais, que deveriam ser os símbolos da justiça e não da violência.
O último plano dá esperança e o desfecho é extremamente satisfatório, no entanto, quando os créditos sobem, sabemos que ainda falta muito para modificar aquela realidade.
Os olhares são perigosos, pois não são apenas preconceituosos, mas também ameaçadores e condenatórios. Quero dizer, conseguimos pressentir o futuro de um personagem pelo tamanho do ódio contido em um simples olhar.
Os negros sabem onde estão e por isso não agem. Seus figurinos são tomados por tons pastéis, que apontam para um silêncio crônico. Eles vivem em um estado de profunda agonia.
A montagem é precisa ao “confundir” os negros com animais. Especificamente um peixe sendo esquartejado e um pássaro preso em uma gaiola. Por mais triste que seja, é dessa forma que eles se sentem e são tratados.
Anderson já foi xerife em uma cidade como aquela e entende o efeito de pequenas atitudes. Ward é fiel aos preceitos do FBI e os segue à risca. Gradativamente, ele percebe que seus métodos não funcionam naquele contexto, então perde a paciência e acata à impulsividade do parceiro.
Willem Dafoe vai muito bem do homem polido para o furioso. Podemos notar sua insatisfação crescente através da mudança na entonação, até o momento catártico, que funciona como um descarrego.
Gene Hackman é um ator talentosíssimo. Ele faz de Anderson um sujeito que usa seu carisma, tanto para ser gentil, quanto para irritar seus oponentes. Ward é rígido demais e seu parceiro é importante para quebrar o gelo em determinadas situações.
Sabemos exatamente quando o personagem vai agredir alguém, mas Hackman cultiva a tensão e sempre começa com um tom falsamente amistoso.
A relação com Mrs. Pell é fundamental para a caracterização de Anderson. Ele também é um homem sensível, capaz de compreender a fragilidade e a dor de uma mulher.
Frances McDormand está sensacional. Não é por acaso que sua personagem não tenha um nome. Ela é praticamente um objeto dentro da própria casa e isso pode ser evidenciado através de sua roupa, que é idêntica ao papel de parede. Com algo tão sutil, os realizadores a caracterizam. Mrs. Pell não tem voz, não é bem tratada, nem amada, é apenas uma empregada de luxo. McDormand é precisa nos olhares – quando seu marido a chama, notamos sua melancolia; porém quando Anderson está por perto, há um brilho diferente em seus olhos, de esperança.
Mrs. Pell gostaria de ter saído do Mississipi e de ter se casado com um homem amável. Ela sonha com coisas, mas vive em um estado perigoso de contentamento com uma vida miserável.
Entre os policiais locais, destaco Brad Dourif, que, por sinal, é um ator extremamente subvalorizado. Seu personagem está sempre sob pressão, há algo dentro dele querendo gritar e assumir todos os crimes com orgulho, contudo, ele se segura e respira.
O filme ainda tem seus momentos de suspense, que são muito bem conduzidos por Parker e seu montador habitual, Gerry Hambling. Há uma sequência de perseguição de carros que é sensacional, graças aos cortes nos momentos certos e as imprevisibilidades criadas pelo diretor.
“Mississipi Burning” é um filme importante e necessário.
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