“Lost Highway”, 1997, foi o primeiro filme da “trilogia de Los Angeles”.
Fred Madison é acordado com uma voz em seu interfone: “Dick Laurent está morto”. Ele mal sabe como reagir e segue sua vida. O protagonista é um saxofonista e vive um relacionamento distante com sua esposa, Renee, que, ao que tudo indica, está tendo um caso com um sujeito chamado Andy. São seres desanimados, desinteressantes e que desistiram do diálogo há um tempo, aceitando a mecanização total do casamento. O sexo é vazio, seus diálogos são para dentro e nunca parecem honestos. Fred é um homem quieto, repleto de dúvidas e demônios internos que desconhece e não sabe como controlá-los. O casal começa a receber fitas, cujo conteúdo é a vida deles. Os vídeos se tornam mais íntimos, então, eles decidem contratar detetives para investigar o caso. “Vocês têm uma câmera?”, pergunta um dos policiais. “Não, Fred as detesta”, responde Renee. “Gosto de lembrar das coisas do meu jeito”, explica o protagonista, em uma das falas mais reveladoras do filme.
Eles vão a uma festa, onde Renee basicamente humilha o marido e dança com Andy. Fred bebe algumas doses de whisky e se depara com um homem pálido e misterioso, que se aproxima e diz estar, simultaneamente, na festa e na casa do casal. Essa é facilmente a cena mais assustadora do filme, iniciando com um longo plano que leva Fred ao bar, chegando ao seu ápice quando a música para, dando espaço a um silêncio apavorante e um diálogo que faz o espectador duvidar da própria lucidez.
Fred volta para casa completamente atordoado e adentra um corredor escuro que conversa diretamente com o seu estado emocional e com o significado por trás do tal homem misterioso. Ele acorda e recebe mais uma fita: Renee estava morta e o protagonista era o assassino. Fred tenta convencer os policiais de que há algum engano, contudo, não existe nenhuma evidência que prove o contrário, logo, ele é preso e condenado à pena máxima: cadeira elétrica.
Suas dores de cabeça se tornam infernais. Sua consciência, ainda que confusa, estava pesada. Fred não demonstra medo, apenas a mesma angústia e insegurança do início.
Misteriosamente, e é aí que David Lynch começa a apresentar sua principal assinatura, não é mais o protagonista que está na cela, mas Pete, um jovem que já havia sido preso anteriormente.
Ele representa tudo que Fred não é e provavelmente gostaria de ser. É confiante, interessante, chama a atenção das mulheres, toma as rédeas de seus relacionamentos e é rodeado de amigos e pessoas que o admiram.
A jaqueta de couro, sua habilidade em consertar carros e seu confortável núcleo são marcas fortes do personagem. Fred era um músico talentoso, no entanto, talvez estivesse mais interessado em coisas palpáveis, uma vida simples, confortável e divertida. Na mecânica em que trabalha, Pete recebe visitas diárias de um mafioso envolvido no ramo da pornografia que o trata como um filho. Eddy é um sujeito perigoso e violento, dono de um temperamento fortíssimo. A sequência na estrada é um aviso para Pete: o mantenha do seu lado, não arrume confusão com esse homem.
Eis que surge Alice, interpretada por Patricia Arquette, que também dá vida a Renee. Diferentemente da esposa do condenado, a namorada de Eddy é sexy, sedutora e vai direto ao ponto. Ela quer Pete e os dois iniciam um romance ardente, repleto de afeto e atração. Ao perceber que o mafioso está desconfiando de algo, Alice decide fugir com seu amor. Tudo que eles precisam fazer é roubar um cafetão e trocar objetos valiosos por dinheiro e passaportes com outro contato de Alice.
O filme entra em territórios cada vez mais surrealistas, seja pelas escolhas musicais, seja pelas imagens distorcidas que se tornam recorrentes, seja pelos movimentos de câmera inusitados, seja pelas luzes que disparam como flashes.
A verdade é que Alice nunca ficaria com Pete, não por não desejá-lo, mas por aquilo ser simplesmente um sonho de Fred, que, gradativamente, se transformou em um pesadelo. Percebam que é quando o protagonista volta a aparecer que a situação muda, ressaltando a sua total falta de personalidade e que, em breve, ele acordaria, pronto para ser executado.
Lynch apresenta uma realidade e dá complexidade aos seus personagens a partir do universo onírico. Fred gostaria de ser Pete, gostaria que Renee fosse como Alice e que seu relacionamento fosse quente e fascinante como o deles. O diretor expõe algumas sutilezas ao longo do segundo ato que fornecem respostas significativas ao espectador. Pete sente uma intensa dor de cabeça ao escutar a música de Fred no rádio; seu diálogo com o homem misterioso é idêntico ao do protagonista; no terceiro ato, Pete passa a demonstrar a mesma insegurança de seu “criador”, o que é salientado na pergunta que faz para Alice no deserto: “Por que eu?” e pelas dores, que só aumentam.
Qualquer artifício que dê ao filme uma atmosfera alucinógena e surreal indica que Fred está prestes a acordar ou que seu inconsciente está transformando seu sonho em pesadelo.
Andy, o sujeito que estava tendo um caso com Renee, é o cafetão assassinado brutalmente por Pete – um desejo – e Eddy era, na verdade, Dick Laurent, que na cabeça de Fred tinha algum envolvimento com o homem misterioso, logo, o vê como um mafioso perigoso. Os mesmos detetives que se impressionam com a estranheza do casal principal, ficam chocados com a quantidade de relações sexuais de Pete.
O próprio sobrenome de Alice é uma bela dica: Wakefield, assim como o fato dela ter sido uma prostituta no passado – ódio de Fred – e a cabine no deserto.
Fred era inocente? Não, ele não mentiu quando disse que preferia se lembrar das coisas do seu jeito. Desde o início do filme, o vemos como uma figura angustiada e ferida, que tem algo a dizer, mas não sabe como. A fotografia e a direção de arte enfatizam o poder da cor vermelha – a cama, as cortinas, as paredes e a maioria dos ambientes -, mergulhando Fred num universo de dores e pensamentos destrutivos. Sua caminhada até o corredor escuro é apenas a aceitação de seu lado “negro”, o que todos os seres humanos têm e desejam nunca ter o desprazer de conhecer. O verde também exerce um papel fundamental na narrativa, representando a instabilidade mental do protagonista; por outro lado, o rosa é marcante na cena em que Pete e Alice transam pela primeira vez, contrastando com o vermelho de Fred e Renee.
O homem misterioso é o corredor escuro, é o pesadelo de qualquer ser humano. É uma força maior que transforma suas dores em ódio, o levando a extrema violência, um desconhecimento de si próprio e a um caminho, literalmente, sem volta. Somente Fred o enxerga, porque eles são a mesma pessoa. Lynch materializa o inconsciente, tornando-o dono da consciência e do corpo e é por isso que “Lost Highway” é tão assustador.
Os planos repetidos e cada vez mais fechados no rosto de Fred, culminando numa explosão imagética, simbolizando o inferno, são primorosos e tristes por dois motivos: estava na hora do protagonista “acordar” e o filme havia chegado ao fim.
É interessante perceber como Lynch muda sua abordagem ao longo da trama, começando com planos subjetivos, planos longos e movimentos de câmera fluidos, criando uma atmosfera inquietante, porém “convencional” perto do que ele realiza nos dois últimos atos. Planos distorcidos e imagens turvas combinam perfeitamente com as escolhas musicais – Rammstein e David Bowie, principalmente –, uma fotografia de cores atordoantes, um design de som assombroso e uma trilha sonora que varia entre batidas jazzísticas e opressivas. Seu uso de câmera lenta também merece destaque ao elevar a figura de Alice. “Lost Highway” tem elementos do gênero Noir, mas é o tipo de obra que não permite rótulos.
A montagem é responsável por dar continuidade ao filme e por belas rimas visuais. Há de se exaltar também o flashback recorrente de Renee ensanguentada, que aparece para atormentar Fred. Suas aparições no sonho são outra dica sutil do que Lynch está tramando.
Bill Pullman merece elogios. O ator faz de Fred um sujeito atormentado, repleto de dúvidas, anseios e medos, além de torná-lo uma figura frágil e insegura.
Patricia Arquette não oferece uma interpretação espetacular, no entanto, é inegável que ela consegue distinguir Renee de Alice, e que ganha o espectador com sua sensualidade – nesse sentido, os planos-detalhe de sua boca ajudam bastante.
“Lost Highway” é uma obra prima que explora os desejos e a podridão humana; o consciente e o inconsciente de uma forma rara e especial. Não é um filme fácil, mas é espetacular.
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