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Ao longo das últimas décadas, Steven Soderbergh construiu uma das carreiras mais interessantes de Hollywood. Inquieto, o cineasta vencedor da Palma de Ouro e do Oscar costuma variar entre projetos experimentais e de alto investimento. Em 2020, em plena pandemia, ele lançou “Let Them All Talk”, que não se encaixa exatamente em nenhuma das categorias citadas acima. Na trama, Alice Hughes, uma escritora renomada, será homenageada com um importante prêmio. Devido a problemas de saúde, ela é aconselhada a viajar de navio e convida três pessoas: Susan e Roberta, grandes amigas dos tempos de faculdade, e Tyler, seu sobrinho. Preocupada com o novo manuscrito, Karen, agente da protagonista, se infiltra como quinto elemento nessa jornada marítima.

O grande mérito de “Let Them All Talk” é formar núcleos e entender como os personagens se relacionam entre si. Soderbergh estabelece um cotidiano rígido, garantindo coesão à narrativa e dando espaço para os indivíduos desabrocharem. Alice, a princípio, parece ser uma mulher esnobe, antipática e egoísta. A partir das interações com Tyler, dos jantares com as amigas e das “religiosas” idas à piscina, percebemos que ela esconde uma vulnerabilidade que conversa com sua atual (e secreta) condição clínica. Seu livro é um mistério, simplesmente porque não há muito a ser dito; o reencontro com as amigas revela uma desconexão com suas raízes e seu lado mais leve; e a presença do sobrinho traz à tona um afeto que, até então, não conhecíamos. Roberta tenta aproveitar o navio ao máximo. Talvez ela esteja querendo se esquecer do fato de que detesta seu trabalho e sofre com dificuldades financeiras; talvez esteja atrás de um bom partido. Roberta tem certeza que Alice se inspirou em suas intimidades em seu livro de maior sucesso. Roberta aceitou o convite para acertar as contas e, quem sabe, escutar um pedido de desculpas. Seu comportamento esquivo é uma indireta sutil; uma forma de dizer que não está tudo bem.

Tyler é, sem sombra de dúvidas, a figura mais interessante do filme. Ele transita entre os núcleos, conversa com todas as personagens e tem o arco mais significativo. Lucas Hedges é um ator que dificilmente passa despercebido, variando entre excelentes e péssimas performances. Aqui, como um jovem inseguro e feliz por estar naquele ambiente, Hedges oferece sua performance mais honesta e humana. Confidente de Alice, Tyler se sente à vontade para expor seus dilemas e é solícito com Roberta e Susan – o navio é um verdadeiro microcosmo de coleta e absorção de experiências. Tyler também fica encarregado de “dar uma olhada” no manuscrito da tia. Sabemos que ele não encontrará muitas pistas, mas que continuará na “missão” para ficar mais tempo ao lado de Karen, por quem se apaixona. São nesses pequenos encontros que Hedges e Soderbergh apresentam suas maiores qualidades. O plano-detalhe da mão que esboça um toque é autoexplicativo. Na cena em que Tyler se declara, o cineasta mergulha os rostos dos dois em tons de vermelho e, depois, abre o quadro, para um plano-conjunto, salientando, antes que Karen responda, que não existe reciprocidade. O interior do navio, destacado por luzes amarelas, diz muito sobre o tom da obra, que, no fim das contas, é leve e prazerosa de se assistir. A montagem dita o ritmo do filme, conferindo fluidez à narrativa e respeitando o caráter cotidiano implementado pelo cineasta – vale ressaltar, que ele acumula as funções de montador e diretor de fotografia.

É uma pena que o roteiro não saiba muito bem o que fazer com Susan, interpretada pela excelente Dianne Wiest, que se resume a uma amiga que adora um escritor que está no navio. Meryl Streep pinta uma imagem intimidadora, revelando, aos poucos, a fragilidade de uma mulher que não tem mais controle sobre nada.

“Let Them All Talk”, assim como quase tudo que Steven Soderbergh faz, deveria ser mais valorizado.

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