Os irmãos Dardenne são mestres em criar experiências intimistas e ultrarrealistas. “Le Fils” talvez seja a maior prova desse talento.
Olivier é um professor de marcenaria em um centro profissional para jovens infratores. O primeiro ponto a ser destacado é o realismo conferido pelos Dardenne e pelo ator principal. Xará do personagem, Olivier Gourmet trabalha muito bem a entonação e a corporalidade, que, instantaneamente, remetem a uma figura de liderança. Sua feição também é fundamental para a caracterização do personagem. Ele está contente, pois se sente útil ali, todavia, em nenhum momento esbanja alegria.
Os Dardenne seguem com o seu estilo quase documental. Eles não estão preocupados em nada além do protagonista. O filme é sobre as pequenas e poderosas expressões faciais de Olivier. Se ele corre desesperado, a câmera o acompanha e “emula” o seu comportamento agitado. Quando está estático, o quadro fecha na altura do ombro do protagonista, realçando o tom intimista do filme. O roteiro – também escrito pelos dois – é um primor. O desfecho é de uma beleza rara e o cuidado dos Dardenne ao enfatizarem momentos, a princípio, “banais” é comovente. A fotografia segue a mesma estética do filme anterior – a falta de cores é um artifício fundamental para o efeito da obra – ; assim como a montagem, de Marie-Helène Dozo, que já havia trabalhado em “Rosetta” e continuaria em projetos futuros.
Na trama, Olivier é surpreendido pela presença de um novo aluno chamado Francis, que, anos antes, havia matado o seu filho de cinco anos. O personagem demora a aparecer e os Dardenne aproveitam esse lapso de tempo para instaurar um forte clima de tensão. As reações do protagonista chamam a atenção, ele anda inquieto e corre pelas escadas como se estivesse se escondendo. O design de som ajuda na criação desse clima, potencializando certos barulhos e explorando ao máximo o silêncio. Estamos preparados para um grande embate e quando os dois finalmente se encontram, Francis está dormindo como uma criança indefesa e nos desmonta. A partir daí, o que temos é um filme repleto de sentimentos complexos, genuínos e paradoxais.
Olivier aceita tê-lo como aluno, mas faz questão de criar distância com sutilezas: ele nunca o chama pelo nome, em vez de passar o lápis, o arremessa e quando tem a oportunidade de pagar o seu lanche, decide não o ajudar. Ao mesmo tempo em que deixa nítida a sua dor, Olivier o traz cada vez mais para perto. Por quê? Para matá-lo? Dar uma lição? Ou para de alguma forma encontrar racionalidade em um ato brutal?
A verdade é que nem ele sabe. É impossível decifrá-lo por absoluto. O momento mais emblemático acontece quando Olivier invade a casa de Francis e, silenciosamente, se senta em uma cadeira e se deita em sua cama. O que deve passar na cabeça de um homem em uma situação assim? O assassino está por aí, com direito a cobertores e seu filho se foi. De qualquer forma, o roteiro não transforma Francis em um vilão, até porque isso não cabe em um filme dos Dardenne. Seu interesse pela marcenaria é verdadeiro, seus prazeres são simples e sua feição denota pureza. Seu padrasto o expulsou de casa, sua mãe não pode fazer nada e seu pai nunca apareceu. Ele é um garoto abandonado, mas também é um assassino e os Dardenne não fazem julgamentos, deixando essa faculdade para o espectador. Francis precisa de ajuda e acredita que Olivier possa ser uma figura importante em sua trajetória. Ambos dividem uma condição: a solidão. Os encontros entre os dois são desconfortáveis, pois sabemos o que o garoto representa para o protagonista e não fazemos ideia de qual será o seu próximo passo. Seu olhar é penetrante, como se quisesse ter certeza de que foi aquele jovem indefeso que matou seu filho. Angústia, raiva, ódio, medo e empatia se misturam e tornam Olivier uma das figuras mais complexas que o cinema já inventou.
As perguntas ríspidas e diretas são paradoxais. Ele quer alimentar ou suavizar a dor?
Obviamente, não direi o que acontece no final, mas posso afirmar que é sensível e revelador. Outros artistas buscariam saídas fáceis, os Dardenne seguem seus princípios e nos encantam.
Assim como em “Rosetta”, os diretores e roteiristas criam um cotidiano regrado e pacato, capaz de envolver o espectador com o protagonista. O trabalho braçal e os abdominais podem passar despercebidos pela maioria, todavia, são fundamentais para constituir a personalidade de Olivier. Os Dardenne ainda demonstram um raro entendimento sobre a natureza humana ao conceberem situações como aquela em que o protagonista reencontra sua ex-esposa e não tem o que falar.
Olivier Gourmet, de forma justa, foi premiado no Festival de Cannes de 2002. Como disse, sua performance é fenomenal.
E “Le Fils” é uma obra prima.
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