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A névoa, as ruas vazias, o homem desesperado correndo, as sombras e a mão da criatura bizarra. Em “Kafka”, Praga é uma cidade sombria e fantasmagórica. A fotografia em preto e branco, além de belíssima, é responsável pela fomentação de uma atmosfera repleta de incertezas e desesperança.

O protagonista – uma versão fictícia do icônico escritor – trabalha numa companhia de seguros. Os planos-detalhe dos papéis dos turnos e das máquinas de datilografar, somados ao plongée que apresenta diversos trabalhadores na mesma posição, realizando as mesmas tarefas, ressaltam a padronização do espaço que, se não fosse por figuras como Kafka, que, à noite, escreve, se estenderia à capital tcheca inteira. “Sou constantemente importunado por tiranos insignificantes, enquanto escrevo relatórios sem importância”.

O sobretudo, os becos escuros e as calçadas estreitas reforçam a ideia labiríntica idealizada por Steven Soderbergh que, antes de propor discussões e investir numa trama instigante, concebe uma atmosfera que transita entre o suspense, o horror e o vazio humano. Visualmente, “Kafka” é ambicioso e, como mencionei acima, sua composição de planos é suficientemente poderosa.

Solitário e crítico da sociedade em que vive, o protagonista se junta a um grupo “clandestino” que busca entender as mortes e os desaparecimentos de seus semelhantes, como, por exemplo, Edward, melhor amigo de Kafka. Repentinamente, ele recebe uma promoção no emprego, o que não faz sentido, já que, apesar de seu talento, era constantemente criticado por seus superiores. Os policiais não têm dúvidas de que Edward se suicidou, nem consideram outra possibilidade. As coisas estão estranhas e, aos poucos, os membros do tal grupo “clandestino” vão desaparecendo.

Os ângulos holandeses não mentem: está tudo do avesso em Praga, uma cidade tão soturna, que parece ter saído da mente do próprio Franz Kafka. O protagonista sabe que é no “Castelo” – sempre apresentado de maneira imponente – que tudo acontece, todavia, não faz ideia de quem trabalha lá e qual o intuito desse órgão.

Ao enquadrar o chefe de Kafka atrás das grades da janela de sua sala, Soderbergh nos dá a pista definitiva: ninguém é confiável, muito menos os poderosos. A lei e a ordem se invertem e aqueles que clamam por justiça são “misteriosamente” eliminados. Quando o protagonista finalmente entra no Castelo, se depara com diferentes portas e o plongée contempla a sua vulnerabilidade diante de um ambiente tão opressor.

Ele abre uma delas e a fotografia, congelante e lúgubre, passa a ter cores. Por que? Nas ruas, nada é nítido, as pessoas vestem máscaras e os crimes ocorrem na surdina; em contrapartida, no Castelo, a engrenagem funciona e os planos diabólicos dos autoritários são esclarecidos. Pela primeira vez, Kafka não estava mais cego, tinha à sua frente o horror de uma sociedade que é contra qualquer tipo de protesto e individualidade.

“Eu tentei escrever pesadelos e você criou um”. Os “anarquistas” são torturados, sofrem lavagens cerebrais e, eventualmente, morrem. Soderbergh confecciona boas sequências de perseguição e a mais fascinante é aquela na qual Kafka e um dos antagonistas precisam caminhar sutilmente sobre uma cúpula de vidro.

Quando ele escapa e sai do Castelo, as cores desaparecem. Sim, o protagonista não tinha mais dúvidas, apenas uma enorme descrença na humanidade. A cena em que os policiais afirmam que uma de suas colegas se suicidou é a mais pessimista do filme. Kafka aceita o seu tamanho em meio a engrenagem e, com uma voz taciturna e uma expressão de desilusão, concorda com as autoridades.

Abrindo o quadro, Soderbergh mostra Kafka aprisionado em seu quarto, preso também a uma tuberculose.
A trilha sonora de Cliff Martinez, parceiro habitual do cineasta, à base de piano, é espetacular e ajuda na sustentação da atmosfera sombria.

O maior problema de “Kafka” reside em seu roteiro, que não se aprofunda na caracterização dos personagens coadjuvantes, nem de suas motivações. Em alguns momentos, assistia a algo extraordinariamente belo, porém sem vida.

Dito isso, Jeremy Irons nunca deixa a obra naufragar. Sua composição passa por uma vulnerabilidade física que combina com sua timidez e inteligência. Kafka tinha planos, no entanto, aceitou a mediocridade e isso fica estampado no rosto de Irons.

Após ser laureado com a Palma de Ouro por seu primeiro trabalho, “sex, lies and videotape”- até hoje, o diretor mais jovem a vencer o prêmio -, Steven Soderbergh tinha um mar de possibilidades pela frente. Em vez de colocar seu nome definitivamente no mapa de Hollywood, ele optou por um projeto pequeno e ambicioso. O benefício da retrospectiva prova que essa foi somente a primeira das várias escolhas inusitadas de Soderbergh.

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