Mrs. Chan e Mr. Chow, ambos casados, estão em busca de um quarto para alugar e acabam se tornando vizinhos de porta.
A ausência de seus respectivos parceiros é notável, realçada por suas aparições apenas de costas. Eles sabem que há algo de errado, mas preferem mentir para si. As “coincidências” são recorrentes, até que Mrs. Chan e Mr. Chow finalmente percebem o que estava acontecendo: seus pares eram amantes. Iniciando como um experimento, eles decidem encenar os encontros e o desenrolar desse relacionamento proibido.
Solitários e sensíveis, os dois acabam se apaixonando, o que julgavam ser impossível. “Pensei que não seríamos como eles, mas estava errado.”
“Os sentimentos podem aparecer de surpresa.”
Eles sofrem, se consideram superiores, se enganam, se apaixonam e…
As coisas simplesmente acontecem, não há como prever o que os corações nos reservam.
Diferentemente de seus cônjuges, os protagonistas respeitam tradições, não querem ser mal vistos, sabem que não terão forças para se divorciarem e que tudo voltaria ao “normal” quando seus parceiros voltassem de suas viagens. Um dos grandes méritos do diretor é misturar, gradativamente, encenação com realidade, a ponto do espectador distingui-los apenas quando um dos personagens diz: “Não chore, isso não é real.”
Em suma, “In The Mood For Love” é sobre um amor poderoso, decorrente da união de almas solitárias, porém impossível de ser consumado. Se a reciprocidade havia sido explorada nos outros dois filmes, aqui, o roteiro foca na falta de timing, que também é o mote em “2046”.
Kar-wai é um gênio, um poeta, e utiliza todas as suas ferramentas para tornar uma história simples em algo complexo, visualmente único, cercado por nuances e detalhes impressionantes.
“Ela se veste assim para comer lámen?”, pergunta uma coadjuvante, referindo-se a Mrs. Chan, que caminha pelas ruas e becos de Hong Kong sempre sozinha, sempre fazendo o mesmo trajeto, sempre comendo a mesma comida. A partir daí, Kar-wai cria um paralelo entre os protagonistas, já que Mr. Chow segue esse exato cotidiano. As elipses ressaltam o vazio dos dias e a melancolia que ambos nutrem.
Kar-wai é tão talentoso, que elabora consideráveis saltos temporais dentro de um único plano.
Na primeira vez em que jantam juntos, eles nunca ficam no mesmo quadro, o que salienta o desconforto de ambos por estarem naquela situação.
A partir do momento em que os encontros deixam de ser uma forma de solucionar um mistério e os protagonistas assumem, silenciosamente, que estão apaixonados, o diretor investe mais em planos-conjunto e planos-detalhe das mãos se tocando, além de diminuir a distância física.
A princípio, cúmplices da mesma dor e da solidão em uma metrópole, os dois se tornam amantes – não no sentido carnal, no de se amarem intensamente.
Há sequências sutilmente íntimas entre eles e Kar-wai posiciona sua câmera estrategicamente.
As grades e o próprio apartamento visto pela perspectiva de fora simbolizam a prisão que suas vidas se transformaram. Nesse sentido, o travelling lateral que exibe a parede que os separa também é fundamental.
Eles simplesmente não podem fazer aquilo que querem e desejam por respeito à convenções, forças consideradas maiores. Até os vestidos de Mrs. Chan, marcados por golas que vão até o seu pescoço, evocam essa sensação, como se ela estivesse amarrada, sendo sufocada.
Na rua, as paredes são decadentes e cumprem perfeitamente a função de evitar expectativas por parte do espectador, ainda que isso seja impossível. A direção de arte, assim como na maioria dos filmes do diretor, trata o verde e o vermelho como cores essenciais, criando não só um contraste estético, mas reforçando a ideia de desejo e amor X melancolia e solidão. O fato do famoso táxi ser constituído exatamente por essas cores denota cuidado dos realizadores. Os apartamentos e os corredores são apertadíssimos e tomados por tons pastéis – tristes e frios. Por sua vez, o roxo aparece discretamente, admitindo a proposta e a atmosfera do filme.
O único ambiente em que uma cor quente é bastante visível é no apartamento alugado por Mr. Chow para escrever seus contos de artes marciais e também para despistar qualquer fofoca suscitada pelos vizinhos.
As cortinas são vermelhas, porém não é qualquer tom, é o mais forte possível, reforçando a ideia daquele espaço como um esconderijo de desejos não consumados e de um romance impossível.
Quando Mr. Chow é transferido para Singapura, o padrão de cores é idêntico, afinal, nada mudou.
É interessante notar a semelhança entre o vestido de Mrs. Chan e determinadas decorações da casa – cortinas e papéis de parede -, enfatizando a condição da personagem, que se vê como uma prisioneira de sua própria vida.
As lágrimas, que demoram a escorrer dos olhos de Mrs. Chan, são antecipadas pela intensa chuva, que tem essa função simbólica.
Outro elemento que cumpre uma função conotativa, graças ao posicionamento milimétrico do cigarro na mão de Mr. Chow, é a fumaça, que parece sair de sua cabeça.
O uso de freeze frames em um filme no qual o tempo – relógios estão por todos os cantos – cumpre uma função primordial é muito bem-vindo e Kar-wai sabe o momento certo de mudar sua abordagem, nunca se apoiando em muletas puramente estéticas.
A montagem, através das já citadas elipses, de cortes abruptos que retratam a dúvida de Mrs. Chan em encontrar Mr. Chow e da manipulação do tempo, e a hipnotizante trilha sonora são responsáveis por dar ritmo e progressão ao filme. As cenas em que os protagonistas caminham em slow motion ao som de “Yumeji’s Theme” estão entre as coisas mais extraordinárias que o cinema já produziu.
Kar-wai abusa de quadros estonteantes e mergulha o espectador numa atmosfera melancólica e poética. O mesmo plano pode ter variados significados, indo da proximidade gradativa à distância estabelecida por seus destinos. Ele sabe quando o foco deve ser uma parte do corpo, o rosto ou apenas a voz. Os planos gerais surgem somente no desfecho, no qual Mr. Chow tenta seguir adiante e deixar seus segredos para trás. As belas e grandiosas paisagens dão liberdade para o protagonista andar, todavia, sabemos que ele não está livre daquele sentimento, nem de sua imaginação.
“O passado era algo que ele podia ver, mas não tocar.”
Tony Leung e Maggie Cheung oferecem performances emocionantes e sutis. A expressividade está em um movimento com a cabeça, nos raros sorrisos, no olhar desesperançoso e na voz que pouco se altera. Ele impressiona pela generosidade e ela, pela pose que mantém – por bastante tempo.
Os personagens estão presos e os atores sabem até onde podem ir, sem nunca fugir das correntes. A química entre os dois é instantânea e fascinante de se observar, afinal, não há nada apelativo ou excitante no filme.
“In The Mood For Love” é uma obra prima.
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