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A principal virtude de Carlos Reichenbach é o seu compromisso com a autenticidade. Por vezes, ele derrapa em suas próprias pretensões, mas é um preço que vale a pena ser pago. Seus filmes são testemunhos da paixão pela liberdade artística. 

“Eu falhei”, diz o homem, desconectado do universo. Fausto está prestes a se divorciar da imagem que criou de si. Ele age como lhe convém, acordando a besta adormecida nas esquinas de sua alma. Traído pelo sonho burguês, Fausto, um homem da indústria, perdeu o emprego, a esposa e a paciência. Socialmente inválido, ele vaga pelas impessoais e frias ruas de São Paulo. Reichenbach retrata a capital paulista como uma selva de prédios; um ambiente que achata e domina os seres humanos.

Quando escutamos alguém falar sobre a história de Jonas, um profeta engolido por um grande peixe, não duvidamos da analogia: o protagonista e a cidade. Ao narrar, com toques surrealistas e oníricos, a jornada de um homem convicto de seu vazio, “Filme Demência” remete a “Depois de Horas”, de Martin Scorsese, e a “A Estrada Perdida”, de David Lynch. Fausto vai a lugares bizarros, ocupados por figuras ainda mais bizarras. 

A casa noturna é impregnada por uma intensa luz vermelha, refletindo o estado primitivo no qual Fausto se encontra. Em meio aos comandos da violência e da libido, ele se depara, repetidamente, com a imagem de uma ilha deserta, um lugar que não poderia ser mais diferente de São Paulo. Seu objetivo é chegar lá? Talvez. Todavia, como o próprio diz no fim, o caminho é mais importante do que o destino. Fausto é o arquétipo do homem burguês, não à toa, está sempre de terno e gravata. Reichenbach o leva às ruas e o desnuda filosoficamente, regendo-o a partir do id. Essa é a viagem das pulsões, do ódio e da anarquia que não leva a nada a não ser o rompimento com o sistema. Os disparos da arma de Fausto são símbolos da dor de um indivíduo que se olha no espelho e é incapaz de se enxergar.

Reichenbach, sempre elegante em seus movimentos de câmera, demonstra uma admirável ambição estética, colocando o espectador numa posição entorpecida – destaque para o uso de cores expressivas e do dolly zoom. Em determinada sequência, a fim de reforçar a desconexão de Fausto perante normas básicas da sociedade, ele opta por um zoom out que o deixa em primeiro plano e uma de suas vítimas, ao fundo, pendurada na janela de um enorme prédio. É o tipo de decisão capaz de sintetizar a obra por inteiro.

O traço mais marcante de Reichenbach é o teor dos diálogos. Poucos cineastas têm tanto prazer em entoar palavrões e obscenidades. “É da merda que nasce a epopeia”, “Fuder, fuder… talvez gozar” e “Os altares do sífilis” são fragmentos que compõem a poesia marginal de Reichenbach, um artista que combina bom e mau gosto magistralmente e que é, ao mesmo tempo, denso e cômico. Sempre que pode, Reichenbach manifesta sua adoração por Samuel Fuller – aqui, detectada pelo cartaz do filme “The Steel Helmet”. Em termos de atmosfera, esta é uma obra contundente e rica; por outro lado, o excesso de monólogos “cerebrais”, à la Godard, enfraquece a força dos argumentos. Você vai querer ir com Fausto até o fim da estrada, mas terá que ter paciência. A imagem de um homem no carro, sem destino, é autoexplicativa e, graças ao corajoso desfecho, ganha contornos ainda mais simbólicos. 

Reichenbach trabalha com um certo nível de artificialidade, perceptível, por exemplo, nas performances dos atores, que abraçam e entendem sua sensibilidade artística. Livremente inspirado na “Lenda de Fausto”, “Filme Demência” é uma experiência única.

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