Um close up de um rosto melancólico, cores frias, um carro amassado, uma forma cética de enxergar o dia dos namorados – inventado para fabricantes de cartões -, faltar ao trabalho sem um motivo aparente, uma narração angustiante e a solidão.
“Não consigo olhar nos olhos de mulheres que não conheço.”
“Por que me apaixono por qualquer mulher que me dê o mínimo de atenção?”
Esse é Joel Barish, um sujeito tão triste quanto as belas paisagens de Montauk. Ele enxerga alguém, a troca de olhares é significativa e rápida.
Ela faz perguntas, o tira de sua zona de conforto e se aproxima dele, que salienta a sua timidez e insegurança através de sutilezas, como o piscar dos olhos e abaixar a cabeça assim que termina uma frase.
Clementine é impulsiva, radiante e alegre. Sua aparência enfatiza isso – cabelos azuis e casaco laranja. São pessoas com personalidades opostas, mas igualmente solitárias.
Joel precisava disso, de um empurrãozinho, para que pudesse se aproximar e tomar as rédeas das conversas.
Os cortes abruptos exploram exatamente a diferença entre o casal, que reage e se expressa de formas distintas. No fundo, quando chegamos a uma determinada idade, queremos apenas nos entregar a um sentimento que parece distante, quase impossível. Joel era um homem moribundo e o seu nervosismo, potencializado pela montagem e por planos fechados na hora de ligar para Clementine pela primeira vez, são a maior prova de que, até para os mais desacreditados, há esperança.
Existe uma vontade notável de demonstrar um “bom desempenho” nos primeiros encontros, o que dá ao filme e, principalmente aos personagens, um incrível nível de honestidade.
Eles se deitam em um lago congelado. Clementine não se preocupa com uma eventual tragédia, já Joel, mal consegue andar de tão apavorado. Percebam que, quando se deitam, o diretor utiliza um plongée que direciona nossas atenções a duas coisas: o afeto entre os protagonistas e a enorme rachadura, que, de uma forma elegante, indica ao espectador como a trama se desenvolverá dali em diante.
Isso tudo acontece antes dos créditos iniciais e existe um motivo genial para o porquê dessa escolha. Os nomes dos atores vão se partindo como o gelo e encontramos Joel em um estado completamente diferente. Abalado e deprimido, ele diz aos amigos que Clementine não o reconhece mais (ou finge).
Eles sabem de algo e Rob decide contar a verdade: a protagonista literalmente o apagou de sua memória.
A gradativa escuridão, as mudanças inesperadas de cenários e a forma como o diretor manipula a profundidade de campo são artifícios muito expressivos, que trazem ao filme um tom melancólico e surrealista.
Joel descobre que realmente existe uma clínica que apaga pessoas da vida das outras, suscitando uma discussão ética e moral fortíssima, ainda mais se considerarmos o comportamento tranquilo e irresponsável dos funcionários e “médicos”. Em determinada cena, Mary, a recepcionista, interpretada por Kirsten Dunst, diz que o que eles fazem é transformar adultos, seres magoados e ansiosos, em bebês. O que torna os seres humanos complexos e maduros é exatamente a capacidade e as diferentes formas de lidar com dores e traumas. Simplesmente “reiniciar” sua vida é apenas um atraso, algo repugnante e extremamente danoso. Sem memórias, o que somos?
Rir e falar dos outros é fácil, mas quando Mary descobre que passou pelo mesmo procedimento sua reação é diferente…
Atormentado por uma depressão arrasadora, Joel decide seguir os exatos passos de Clementine. Para isso, ele precisa esvaziar sua casa de qualquer coisa que remeta ao seu grande amor e sua dor nessa sequência é palpável. Na mente do protagonista, assistimos o relacionamento por inteiro, na ordem cronológica invertida, indo do fim ao amor mais puro e ingênuo.
De fato, o namoro chegou a um estágio em que as personalidades opostas deixaram de ser algo encantador, sendo insuportável e incontornável. Eles se tornaram o tipo de casal que os outros olham e sentem pena, notando instantaneamente a falta de afeto. Clementine quer ter um filho, Joel não. Ela se considera um livro aberto e diz que ele nunca se expõe, o que não é mentira, no entanto, se Clementine deixasse sua hiperatividade de lado por um instante, talvez notasse um homem magoado e sensível, que se considera desinteressante, mas que já a amou profundamente.
Joel enxerga os defeitos dela e ela, os dele. Além dos raccords e dos cortes abruptos, é fascinante ver como a montagem foi concebida, fazendo o espectador analisar aquele relacionamento de trás para frente, enxergando os problemas e depois os belos momentos, que reforçam o desejo de Joel, ainda que praticamente impossível, de cancelar o processo, afinal, o único remédio para as dores que sentia eram as suas memórias. A partir daí, o diretor Michel Gondry, que já optava por uma abordagem surrealista, mesclando entre sonho, lembranças e realidade, embarca de vez nessa mistura, que resulta em sequências de rara inventividade, beleza e melancolia difíceis de se encontrar nos filmes atuais. Os cenários vão desmoronando – metáfora para a dor do protagonista – e Clementine vai, lentamente, sumindo – ainda que seja a versão fabricada por seu inconsciente. Conhecemos outro lado de Joel, um mais leve, alegre e divertido, que não se importa com julgamentos alheios e não se rebaixa. A fim de despistar a equipe por trás da lavagem cerebral, ele precisa pensar em situações do passado que fujam de seu relacionamento com Clementine, nos levando, por exemplo, a sua infância.
Marcado por paisagens geladas, paredes cinzas e uma fotografia majoritariamente melancólica, que vai da neblina a tons de azul e preto (apesar de ter os seus momentos com cores mais vivas e alegres), “Eternal Sunshine Of The Spotless Mind” é uma obra minuciosamente desenvolvida por Charlie Kaufman, que trata os relacionamentos como lapsos de felicidade que acabarão em feridas de difícil cicatrização. De qualquer forma, é o que temos e tentar é o melhor que podemos fazer. Vale ressaltar que Kaufman ainda dá espaço para os coadjuvantes brilharem, criando subtramas surpreendentes e bem resolvidas.
A já destacada direção de arte merece elogios por dois objetos em especial, responsáveis pela caracterização dos personagens: a cama desconfortável de Joel e a bolsa rosa e roxa de Clementine. O contraste entre o figurino dos dois também é bastante representativo.
O design de som é um dos principais responsáveis pelo efeito surrealista. As vozes que Joel escuta no mundo real são fundamentais para a lógica de sua imaginação e a música que parece ter saído de um disco arranhado combina com o tom imprimido pelo diretor, que aposta na presença de figuras assustadoras, no uso de câmera na mão e em planos sucedidos por uma montagem inteligente e atmosférica.
A trilha sonora varia entre algo estranho, como a primeira interação entre os protagonistas, e belas melodias, que reforçam o quão especial foi a boa fase do casal.
Kate Winslet faz de Clementine uma figura, simultaneamente, doce e hiperativa, que você pode se apaixonar ou odiar. A atriz adiciona temperos à “Manic Pixie Dream Girl”, tornando-a complexa, imprevisível e humana. “Mas sou só uma garota ferrada procurando pela minha paz de espírito.”
Jim Carrey oferece uma performance introspectiva, doída e gentil. Há uma forte melancolia em seu olhar por boa parte do filme e sua entonação é um complemento perfeito à sua composição. O ator tira alguns sorrisos do espectador, passa uma sensação de desespero e vai na contramão de sua parceira, ao optar por trejeitos delicados e orgânicos.
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