“EO” talvez seja o filme menos comercial e convencional indicado ao Oscar. Seria muito mais fácil e óbvio escrever sobre “Everything Everywhere All At Once” ou “Avatar 2”, no entanto, estaria sendo injusto comigo se não dedicasse um texto a um dos filmes que mais me comoveu no ano passado e que será assistido por pouquíssimas pessoas.
EO é um burro de circo, amado por Kassandra, sua colega de palco, e que é confiscado pelo sindicato dos protetores de animais, que proíbe a sua exploração nesse tipo de espetáculo. A partir daí, seguimos sua triste e solitária trajetória em busca de afeto e um lar, sempre se recordando da única pessoa que o amou verdadeiramente.
Claramente baseado na obra prima de Robert Bresson, “Au Hasard Balthazar”, “EO” é um filme contemplativo, repleto de quadros estonteantes, que coloca o espectador no lugar de seu protagonista e que realiza um estudo preocupante sobre os seres humanos.
Em seu caminho, nosso amigo se depara com algumas pessoas que o tratam com carinho, como a família no campo e o padre, contudo, o que, infelizmente, impressiona, é a frieza e a brutalidade da grande maioria. O diretor encontra maldade em gestos sutis – por exemplo, as palmadas na bunda e um diálogo entre um veterinário e seu assistente – e em atos de extrema covardia. Quem viu o filme sabe que há uma cena em especial que machuca mais do que qualquer outra. De onde veio esse ódio e essa indiferença toda? Não é possível que os seres humanos sejam tão maldosos e podres a ponto de espancarem um pobre burro.
Os próprios torcedores do tal time que o adota como mascote, apesar de felizes, o espremem de uma forma indelicada.
Às vezes, EO recusa uma cenoura, às vezes se defende, mas nunca está feliz, está sempre em busca de algo, sempre fugindo e se encolhendo. Em determinado momento, o protagonista chega até uma floresta e encontra outros animais, cujos sons são potencializados pelo excelente design de som. Minutos depois escuta estrondos, vê feixes de luz e se depara com mortes. A abordagem do veterano diretor Jerzy Skolimowski é intimista e muito pessoal. Ele abusa de planos fechados e detalhe, capazes de captar uma tristeza palpável, que nos machuca profundamente. Existe um vazio impossível de se medir naqueles olhos e é exatamente essa inexatidão que nos fere e nos coloca ao lado de EO. O diretor utiliza câmera na mão para emular o atordoamento e a dor que o protagonista sente, criando também uma atmosfera psicodélica – muito ligada ao uso de cores. Skolimowski adota uma série de simbolismos, sendo o principal os seus plongées acompanhados de círculos vermelhos, que ressaltam a vida violenta e triste que os animais vivem. O vermelho está por toda a parte e, a não ser pela roupa de Kassandra – amor -, ressalta esse sentimento de dor e abandono. Invariavelmente, o diretor cria metáforas que envolvem essa cor, colocando uma porta ou uma luz forte no fim de um corredor, representando uma espécie de esperança ou motivação.
A fotografia não para por aí, apostando também em tons frios, escuros e azulados que, além de belíssimos, dão ao filme uma forte carga emocional e uma consciência ao burro.
Skolimowski realiza alguns quadros de puro brilhantismo, alcançando níveis distintos de apreciação – seu planos gerais são inigualáveis. A secura das áreas urbanas reflete no comportamento humano e a beleza dos vastos campos, no vazio sentido por EO.
Para enfatizar a brutalidade e sua proposta empática, Skolimowski utiliza planos subjetivos, o que é fascinante, considerando que estamos vendo as coisas pela ótica de um ser vivo de quem podemos até gostar, mas desconhecemos.
Os gritos do protagonista não são barulhos banais, são chamados de socorro. Ele quer o velho carinho e a cada pessoa que conhece, se entristece, relembrando de sua relação com Kassandra. Nesse sentido, a montagem realiza um trabalho admirável, entrando na psique do burro e compreendendo seus anseios. O ápice dessa delicadeza é aquele em que a difícil respiração e o sangue de EO contrastam com os beijos e o carinho de Kassandra.
As paisagens, gradativamente, se tornam mais geladas e o protagonista segue sua jornada. Após algumas lágrimas, nos acalmamos um pouco quando ele encontra um jovem e simpático padre, que o leva para casa. A verdade é que os dois são parecidos. Vito é solitário e vive uma vida errante. Existe um laço de reciprocidade entre os dois, entretanto, EO precisa seguir em frente, chegando a um desfecho brilhante e devastador.
Percebam que o protagonista nunca está acompanhado de seus semelhantes, é confundido com cavalos e, se não está sozinho, está ao lado de outros animais. Entre tantas sutilezas, essa é apenas mais uma para salientar o significado da trajetória de EO.
Destaco também o uso de câmera lenta que, assim como quase tudo no filme, encontra um balanço perfeito entre a melancolia e algo esteticamente deslumbrante.
A trilha sonora varia perfeitamente entre tons, conseguindo ser linda, taciturna e aterrorizante.
“EO” não é para todos. É uma obra prima contemplativa, silenciosa e reflexiva, que explora a complexidade envolvendo os seres humanos, não ficando apenas no embate entre brutalidade e bondade e que merece elogios pelo retrato empático de um burro. Não há dúvida alguma de que os realizadores de “EO” nutrem um amor profundo pelos animais e que protegê-los e tentar compreendê-los é algo que os comove.
Como grande fã de “Au Hasard Balthazar”, temi por um “plágio” e não poderia ter saído mais satisfeito. Ainda que Bresson e Skolimowski façam analogias próprias, o tema é bastante similar. No entanto, em termos formais, os filmes não poderiam ser mais diferentes, sendo este um espetáculo visual, com uma linguagem extremamente sofisticada, calcada na contemplação e em simbolismos.
Por último, gostaria de criticar a Academia por não ter indicado nenhum dos burrinhos para a categoria de melhor ator…
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