Skip to main content

Na década de cinquenta, em Toronto, dois gêmeos idênticos, ainda crianças, perguntam à uma menina, por razões científicas, se ela gostaria de transar com eles numa banheira.

Anos depois, na universidade, a dupla, com seu espírito transgressor e vanguardista, cria o “Retrator Mantle”, revolucionando completamente o que se conhecia acerca da ginecologia até então.

-Bev, você deveria ter ido.

-Eu fui.

Beverly e Elliot dividem tudo; as mulheres, o apartamento, os estudos, a clínica e as próprias identidades. O primeiro é sensível e vulnerável, enquanto o segundo é extrovertido e cínico. Isso pouco importa a eles, já que, na maior parte do tempo, investem numa convincente interpretação do outro, esquecendo, no processo, quem realmente são. É como se todas as características se unissem a uma única pessoa, o que impede qualquer tipo de individualidade ou vida particular.

Ginecologistas de renome, os Mantle adoram “provar” suas pacientes, o que sempre é iniciado por Elliot, que não tem dúvidas de que, se não fosse por ele, seu irmão ainda seria virgem. As coisas mudam quando Claire Niveau, uma atriz famosa, aparece na clínica com uma rara condição que a impede de engravidar. Elliot quer o de sempre, todavia, Beverly, ao se deparar com aquela figura frágil e assustada, se apaixona.

É a primeira vez que um deles sente algo profundo, não compartilhado e, caso queira seguir adiante, Beverly terá que aprender a se desligar de seu “duplo” e a entrar em contato com seus sentimentos e anseios. “Às vezes, gosto muito de você. E, às vezes, você é uma transa divertida e só”, diz Claire, que, certamente, é uma das poucas pessoas que desconhece a existência dos gêmeos.

Quando ela finalmente os encontra juntos, além de se sentir usada e ridicularizada, praticamente faz um ultimato: os jogos acabaram, Beverly precisa escolher se seguirá o seu próprio caminho ou se continuará sendo a outra face de Elliot. Nessa cena, a distinção entre os dois é realizada a partir dos figurinos; a gravata vermelha conversa com a ousadia de Elliot e o terno cinza, com a sobriedade de Beverly.

Parece simples, eles não precisam deixar de se ver, muito menos de trabalhar juntos, só têm que aprender a abraçar aquilo que os torna seres humanos únicos e dissociáveis. Ao nascerem, os bebês têm o cordão umbilical cortado e, por insegurança e conforto, os Mantle nunca realizaram tal procedimento. Os efeitos desse atraso parecem irreversíveis, ou seja, um afastamento representaria apenas um alongamento do cordão que, em algum momento, retornaria ao seu tamanho normal. Em uma sequência onírica, Cronenberg traduz essa relação doentia com seu clássico “horror físico”. Na casa de Claire, Beverly se comporta como uma criança animada por estar longe dos pais. Sua infantilização é justificada na medida em que entendemos que tudo é novo: o amor, o ciúme, a frustração e a solidão.

Elliot, ao notar que Claire se tornará um elemento de desordem na “saga Mantle”, faz uma proposta indecente e pergunta a ela se eles são, de fato, tão diferentes assim. Como mencionei acima, Claire é uma atriz, logo, viaja bastante. No primeiro momento de distância, Beverly, que havia sido introduzido a medicamentos controlados pela amada, se entrega às drogas.

Gradativamente, o cordão perde a elasticidade, o obrigando a voltar para o colo de Elliot, que se coloca a disposição para desintoxicá-lo, o afastando de qualquer médico e clínica de reabilitação. Sua frustração é tão grande, que ele não consegue mais enxergar a habitual “beleza interior” feminina, passando a chamar suas pacientes de mutantes. As roupas vermelhas usadas nas salas de operação já chamavam a atenção, no entanto, é quando Beverly usa seus novos instrumentos que a roupa realmente ganha uma conotação macabra – um açougueiro, não um médico.

Elliot não demora muito para iniciar o seu processo de sincronização e a mudança de gravata – se lembram da vermelha? -, agora azul, ressalta a sua total instabilidade e fragilidade física. A essa altura, eles não são apenas gêmeos idênticos, mas siameses; a operação de separação é inconcebível, a vida a sós não é uma possibilidade.

No fim, eles caminham e se vestem identicamente, como no início, quando eram crianças. O ciclo é evidente e somente Cronenberg seria capaz de realizar algo tão bizarro e relevante.

Parte da atmosfera sombria e incômoda se deve aos trabalhos espetaculares de direção de arte e fotografia. As salas são frias em suas cores e textura, conversando, por exemplo, com as aberrações metálicas que Beverly encomenda para operar as “mutantes” e salientando a falta de opção dos irmãos, presos a eles mesmos. Os luxuosos locais nos quais discursam e palestram são marcas da reputação que carregam enquanto ginecologistas. O azul, presente nas roupas, nas paredes e na iluminação, é a cor da vulnerabilidade e da autodestruição. Quando a impecável clínica se transforma num amontoado de lixo e drogas, temos certeza de que não há mais volta.

A predileção por tons frios é fundamental, afinal, estamos falando de seres sem discernimento de suas próprias características; seres que, por mais distintos que sejam, ignoram suas individualidades. A escuridão se torna maior, os espaços, devido o caos psicológico, ficam menores e o uso de sombras é perfeito ao pontuar o tamanho daquilo que impede Beverly e Elliot de assumirem seus nomes e se afastarem do termo “os magníficos irmãos Mantle”.

Cronenberg é um gênio autoral e a sua concepção de quadros é incrível. A sala com a cortina que envolve a cama na qual Beverly, adoecido, repousa é retratada pelo cineasta como a representação máxima de uma devoção doentia. No jantar de “apresentação”, Claire fica no centro da mesa e os irmãos nas extremidades, formando um triângulo – ela terá que entrar no meio, aceitar o todo.

Dito isso, o grande destaque de “Dead Ringers” é Jeremy Irons, que compõem personagens completamente diferentes e um dos retratos mais viscerais de um viciado em drogas. Cada irmão tem uma inclinação vocal e física específica e a destruição é meticulosamente calculada pelo ator. Os passos atordoados, a desconfiança crônica e o comportamento acelerado impressionam, mas são os trejeitos infantis que ratificam a complexidade de seu trabalho. A última interação entre os gêmeos é a prova definitiva de que eles nunca abandonaram o útero materno…

“Dead Ringers” é um daqueles filmes que, justamente, sempre será lembrado e analisado.

O que você achou deste conteúdo?

Média da classificação / 5. Número de votos:

Nenhum voto até agora. Seja o primeiro a avaliar!