Bill e Alice estão atrasados para uma festa. Ele pergunta onde está sua carteira e ela quer saber como está sua aparência. São perguntas e respostas automáticas, que fazem parte de um cotidiano regrado, que estipula como o casal deve se comportar e reagir.
Eles chegam na festa e logo se separam. Bill conversa com duas jovens e utiliza seu charme para seduzi-las, sabendo que o controle da situação é seu e que aquilo é apenas uma brincadeira. Em contrapartida, Alice dança com outro homem e deixa se levar pelo jogo de olhares e palavras. A arte é usada como um pretexto para a libertação dos desejos mais primitivos. A festa é luxuosa e as pessoas estão muito bem-vestidas, mas no fundo, aqueles são apenas disfarces, que encobrem a real faceta da alta sociedade novaiorquina.
Eles não parecem um casal e Kubrick sabe disso, não à toa, quando chegam em casa, se beijam em frente ao espelho, como se tivessem que reafirmar para si o amor que sentem um pelo outro. A canção “Baby Did A Bad Bad Thing” é um complemento perfeito ao momento.
O que representa o casamento? Conforto? Amarras? Problemas? Padronização? Tudo isso? O homem vê o matrimônio como um compromisso tranquilizador. Ele detém mais poder – financeiro e emocional -, pode flertar, errar e relaxar, pois sabe que sua posição dificilmente será ameaçada. A mulher é vista, primariamente, como um objeto sexual e deve se ater a funções básicas caseiras.
Bill é o doutor bem-sucedido que pergunta sobre sua carteira e está sempre relembrando a todos de seu emprego. Ele é rico, é casado, tem uma filha, uma bela casa e sabe que tem as mulheres aos seus pés. Seria errado admitir alguma tentação, afinal, Bill estaria saindo do papel de homem infalível. No entanto, o que Kubrick pontua em sua última obra prima é que todos nós somos animais. Óbvio, vivemos em sociedade, aprendemos a agir de forma civilizada e a controlar a maioria dos instintos, mas no fundo, somos primitivos e insaciáveis.
Os primeiros minutos provam que o ser humano tenta e se esforça para manter uma certa pose, contudo, é um hábito que transforma a vida em uma enorme mentira. Alice é honesta. Ela percebe que seu casamento se tornou uma convenção, algo que se mostra para os amigos, mas é vazio e sem sentido. Alice conta uma fantasia que teve em uma viagem no passado, admite que sente atração por outros homens e que se esforça para se manter leal. Em vez de abraçá-la e enfrentar a fantasia, Bill se desmonta, percebe que a segurança que tanto cultivava não era palpável e que o seu papel estipulado pela sociedade estava em perigo. É interessante notar que para o casal chegar a esse nível de abertura, foi preciso o uso de entorpecentes, ou seja, sem uma “ajudinha”, tudo seguiria exatamente da mesma forma. Bill é injusto e falso, pois tinha dilemas idênticos aos de Alice, mas não os admitia.
“De Olhos Bem Fechados” é um filme sobre máscaras, o que somos, o que fingimos ser e o que temos que atingir. A alta sociedade novaiorquina vive de uma imagem que deve acompanhar o luxo de suas mansões. Eles precisam ser os mais sensatos e distintos. Dentro desse pacote está o casamento, um laço entre duas pessoas que, supostamente, se amam. Kubrick entende que os pilares do matrimônio são: entendimento, respeito, amor e sexo. A imagem de algo concreto não vale absolutamente nada. Alice e Bill não tinham um relacionamento, apenas elementos capazes de fortalecer um. De longe, é belo e perfeito, de perto, é cansativo e deprimente.
O passo de Alice foi em busca de algo a mais e Bill, preso a padrões idealizados e uma persona, não havia entendido. Ele parte em uma jornada noturna repleta de mistérios e significados. Como um bom animal, o protagonista usa a história da esposa para saciar seus desejos reprimidos. Bill sai com prostitutas, descobre que uma paciente o ama e para em uma festa arrepiante. Ele não sabe muito bem como lidar com o relato de Alice e sente um misto de culpa e alívio. Há sempre algo que o impede de transar, talvez um aviso, um pedido por uma nova chance. Um detalhe sutil e primordial são os ambientes percorridos pelo protagonista. Percebam que a primeira vez que ele se entrega ao prazer é numa casa precária, que difere de seu status, logo, está permitido sair do personagem. A noite acaba em uma festa misteriosa – facilmente o momento mais icônico do filme. Pela arquitetura da casa e a música escutada, ela só pode ser de pessoas extremamente ricas, contudo, esse não é o ponto principal, já que, todos estão pelados e usam máscaras. Se na sequência inicial as pessoas mostravam os rostos e se vestiam elegantemente, aqui, os corpos estão à mostra e as faces tampadas. Esse contraste conversa com tudo que foi discutido e trazido à tona. O desejo carnal e visceral está lá – as pessoas transam desenfreadamente -, assim como a vergonha, o medo de se expor. Kubrick cria uma atmosfera tensa, tornando o filme ainda mais interessante. A trilha sonora é impactante, a câmera circula calmamente dentro do ambiente e cultiva o suspense, que chega ao ápice quando a montagem intercala, com cortes secos, planos fechados dos rostos de cada pessoa. Bill está em perigo, ele não deveria estar ali. As perseguições silenciosas, as notas repetidas do piano, a atmosfera soturna de Manhattan, a paranóia e a inconclusão são elementos primordiais para o desfecho e o tom misterioso do filme. Kubrick nos enche de indagações e não dá respostas, caso contrário, tiraria a graça da experiência.
No fim, “De Olhos Bem Fechados” prova ser uma obra provocativa e instigante. Bill passa por situações que nem entende, experimenta certos desejos e entende que sim, existe um lado animal dentro de nós e ele deve ser controlado através de diálogo e respeito. Não sabemos se Bill e Alice vão ficar muito tempo juntos, mas temos certeza de que agora eles são, verdadeiramente, um casal.
A fotografia azulada denota a mecanização e frieza entre os protagonistas e o vermelho da cama tem a conotação de luxúria.
A montagem realiza um grande trabalho ao intercalar a trajetória de Bill com seus pensamentos sobre o relato de Alice, deixando claro que o personagem está confuso e angustiado.
Há vários detalhes muito bem orquestrados por Kubrick e o meu favorito é a forma como Bill chega ao seu amigo, Nick Nightingale. Os dois eram colegas na faculdade de medicina, até que Nick largou tudo e virou um pianista de bar e festas. A barreira social é nítida e o protagonista tem que descer – física e simbolicamente – para chegar no bar onde ele toca.
Nicole Kidman faz um belo trabalho mantendo a expressão facial, admitindo a condição de mãe e dona de casa. Sua entonação pouco varia, a não ser quando ela está bêbada e age genuinamente.
No entanto, o grande destaque é Tom Cruise, cujo personagem passa por situações densas e complexas. O ator confere um grau de realismo impressionante aos sentimentos de Bill. Ele fica excitado, está sempre flertando, mas sente medo, expõe cada vez mais suas inseguranças e ainda encontra espaço para refletir sobre suas próprias ações. A performance de Cruise é repleta de nuances, nossa percepção sobre o protagonista se altera, porque ele também está em um processo de transição e autoconhecimento. A única coisa que nunca muda, seja lá qual for o projeto, é o seu charme.
A coleção de coadjuvantes é fascinante e fundamental para a tensão crescente e momentos marcantes.
Kubrick disse que este foi o seu melhor filme. Não iria tão longe, porém, é inegável que é uma obra maravilhosa.
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