“A vida passa muito depressa. Se não pararmos para curti-la de vez em quando, podemos perdê-la.”
Se eu pudesse ser algum personagem de um filme, provavelmente escolheria Ferris Bueller. Nem todo super-herói usa uma capa.
Na juventude, idealizamos uma realidade paralela, um mundo de sonhos, onde tudo é permitido. Sabemos que, por medo, fraqueza e disciplina, nunca sairemos dessa linha e que se algo de diferente acontecer, não será nada extraordinário. A escola é importante. De segunda a sexta, os adolescentes escutam barulhos, palavras que não fazem muito sentido e têm que se preparar para algo maior. Nada é palpável, mas as obrigações são muito nítidas e a escola, enquanto instituição, pode soar como uma prisão. Por que não fugir por pelo menos um dia? Por que não viver uma experiência única? Perder uma aula de matemática é tão grave assim?
Nesse sentido, “Curtindo a Vida Adoidado” ultrapassa o status de filme e se torna um marco. Tenho certeza de que se você é um jovem honesto consigo, irá se identificar com Ferris Bueller. Ele faz absolutamente tudo que gostaríamos: engana superiores, conhece todos os truques, sabe usar chantagem emocional e, principalmente, aproveita a vida.
“Não acredito em ismos, acredite em si mesmos. John Lennon disse: “Não acredito nos Beatles, acredito em mim.”
Existem filmes que te fazem refletir sobre a sua existência e existem filmes que te dão vontade de trancar a faculdade a fim de experimentar todos os prazeres da vida.
Os primeiros minutos situam o espectador, que se depara com um protagonista que olha para a câmera e lhe faz perguntas, diz coisas surpreendentemente profundas e age como a “melhor versão de nós mesmos”. Ele nos convida a acompanhar sua jornada e, por pouco mais de noventa minutos, vislumbramos e rimos do impossível. No fundo, “Curtindo a Vida Adoidado” é um filme sobre anseios negados, pensamentos positivos que passaram por nossas mentes e foram rapidamente esquecidos.
Ferris quer apenas aproveitar um belo dia com seu melhor amigo e sua namorada. Seu aparato tecnológico é impressionante, no entanto, o que mais chama a atenção é a sua capacidade de ludibriar adultos. Sua fala mansa é contagiante e seus argumentos são coesos. Ferris já sabia como seria seu dia antes mesmo de acordar, sua cabeça funciona em outra rotação. Se o protagonista não demonstra nervosismo quando seu amigo diz que vai ficar em casa, é porque o conhece bem o suficiente para saber que em poucos minutos Cameron mudará de ideia. A relação entre os dois é interessante. Suas personalidades são opostas, mas o carinho que nutrem é enorme. Ferris poderia escolher qualquer um e o fato de Cameron ocupar esse posto salienta que a amizade vem de anos atrás e que, mesmo diferentes, ambos se conhecem e se respeitam profundamente.
O sol e a piscina do protagonista contrastam com o quarto escuro repleto de remédios de Cameron. Sua opção em aceitar a aventura maluca de Ferris prova que está em busca de autoconhecimento, fugir um pouco de amarras estabelecidas pelos pais e diversão. Cameron é tão travado que parece estar prestes a ter um surto de ansiedade a qualquer momento. Ferris o convence a levar a Ferrari de seu pai para um passeio, mas antes, precisam buscar Sloane na escola.
O diretor da escola, Ed Rooney, é uma figura chave na trama. John Hughes deixa nítido que sua visão é a de um jovem aprisionado, logo, a autoridade máxima da escola é um ser infeliz e malicioso. Ele é o único que suspeita de Ferris e fica o filme inteiro atrás do protagonista, como um abutre cujo único prazer é censurar adolescentes. O brilho está em seu olhar e é, reconheço, prazeroso acompanhar a sua lenta e dolorida derrocada, que envolve um cachorro, a polícia, lama e inúmeras humilhações.
Enquanto isso, Ferris, Cameron e Sloane mentem sobre suas identidades em um restaurante, visitam o maior prédio do mundo e invadem um carro alegórico. Entretanto, o momento mais marcante do filme, na minha opinião, é quando os três visitam um museu. A música do “The Smiths” – em uma versão instrumental – conversa diretamente com a trajetória deles. Dentro dessa farra, John Hughes encontra espaço para sutilezas, detalhes belíssimos. Ferris e Sloane se beijam em frente a um vitral azul e Cameron se identifica com a pintura de uma criança melancólica que dá as mãos para os pais. O quadro vai se fechando e expõe o interior doído do personagem.
A trama flutua entre a busca incessante de Rooney, a aventura do trio principal e as dúvidas da irmã do protagonista, que não entende porque tudo dá certo para Ferris.
Os núcleos se misturam e é aí que entra a tensão. “Curitndo a Vida Adoidado” não é apenas um marco, é uma obra com uma linguagem sofisticada, que subverte certas convenções e funciona dentro de gêneros distintos. A montagem eleva algumas sequências, deixando o espectador na ponta da cadeira com um possível “desfecho negativo”. Por diversas vezes, ele é quase pego, seja pela mãe, pelo pai ou pelo diretor. A agilidade dos cortes e a presença marcante da trilha sonora fazem toda a diferença. Hughes cria distrações e exibe um controle notável atrás das câmeras.
Ferris sabe que tirar Cameron de sua zona de conforto pode lhe fazer bem e é honesto quando pede sua namorada em casamento. Ele é impulsivo, porém sincero. Sabe que é idolatrado, mas tem seus pilares bem estabelecidos. Ninguém ali faz a menor ideia de que carreira quer seguir e isso não importa, pelo menos não enquanto assistimos ao filme. John Hughes quer nos fazer lembrar do passado, rir e se deliciar.
Cameron aprendeu algo após destruir a Ferrari do pai e Jeannie, irmã do protagonista, que o amor pelo seu irmão era muito maior que o rancor que julgava ter. Ferris repete a frase que deu início a esse texto com uma convicção ainda maior.
“Curtindo a Vida Adoidado” é movido por cenas icônicas: a apresentação, “a morte da avó de Sloane”, o museu, Twist and Shout, a Ferrari, a correria final…
Hughes acredita genuinamente que a curtição é essencial para o amadurecimento do jovem e que a sua energia é capaz de qualquer coisa – a cena da passeata é o grande exemplo.
Alan Ruck está excelente como o amigo nervoso e neurótico de Ferris. Cameron é o personagem com o arco mais identificável.
Jeffrey Jones é o diretor da escola que amamos odiar. Rooney é um personagem propositalmente unidimensional. O ator utiliza muito bem sua expressividade facial para fazer o espectador gargalhar.
De qualquer forma, qualquer interpretação aqui parece pequena perto da de Matthew Broderick, que encarna o protagonista com uma vivacidade impressionante. Ferris é a junção de todos os estereótipos dentro de uma escola. Ele é o que nós nunca conseguimos ser. Além de hilário e extremamente carismático, Broderick parece entender a magnitude de seu personagem e oferece uma performance generosa e grandiosa.
“Curtindo a Vida Adoidado” é uma obra prima que entende o valor da rebeldia juvenil e olha para os adolescentes com um carinho especial.
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