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A caminho de casa, após uma entrevista de emprego em Nova Iorque, David Dunn flerta com uma desconhecida. Shyamalan filma essa interação através da fresta de um assento, tornando a situação ainda mais constrangedora.

Logo no início, antes de entrarmos no terreno mais concreto, o cineasta caracteriza o protagonista como um homem infeliz e entediado. A essa altura, todos já sabem que “Corpo Fechado” é um filme de “herói”; todavia, o que o torna tão especial, é o paralelo estabelecido por Shyamalan entre a origem do super-herói e a procura por sentido em meio ao vazio cotidiano. As pessoas buscam suas verdades; algo que as aqueça e as faça acordar com esperança e, no fundo, “Corpo Fechado” é sobre isso. 

Após o catastrófico acidente de trem, as autoridades anunciam que David foi o único sobrevivente. E, mais: ele não sofreu um único arranhão. Na sala com a maca, Shyamalan coloca o protagonista no centro do quadro, enfatizando o que ainda virá à tona. David trabalha como segurança em jogos de futebol universitário, o que, também, não deixa de ser revelador. Em um outro plano extremamente bem pensado, vemos David no túnel de acesso ao campo, de costas, vestindo uma CAPA de chuva. Em casa, ele tenta se conectar com o filho e dorme em um quarto separado de Audrey, sua esposa, com quem enfrenta crises constantes. David passa a impressão de ser um sujeito inerte, incapaz de entrar em contato com seus próprios conflitos e de demonstrar empatia por seus entes queridos. Seu jeito salienta a mediocridade de sua existência. Não se enganem: este não é um homem mau, mas um desconectado de quase tudo que o cerca. 

Eis que, Elijah, que sofre com uma rara disfunção genética que enfraquece seus ossos, interessado no acidente de trem, deixa uma mensagem enigmática para David. Desprovido de esperança, Elijah passou sua juventude em hospitais, lendo histórias em quadrinho e acabou desenvolvendo uma obsessão: a busca por um herói na terra, um homem que desafie as leis naturais e possua algum tipo de dom. Elijah, com suas teorias, leva o protagonista a reavaliar acontecimentos do passado e a repensar sua vida. David nunca ficou doente e a lesão que, supostamente, encerrou sua carreira no futebol americano foi, na verdade, uma desculpa para abandonar um antigo sonho e se dedicar ao casamento. Deve ser difícil olhar para uma mulher que, cada vez mais, significa menos e não se lembrar de certas escolhas. Elijah é a prova definitiva de que David deixou de se importar consigo e de se questionar, assumindo, inconsistentemente, o piloto automático. David não se conhece mais, nem sabe se vive por algum propósito. Elijah, à sua maneira, recupera sua curiosidade por auto conhecimento e pela vida. 

Shyamalan, em mais uma demonstração incontestável de talento, filma, à distância, uma interação entre os “novos amigos”, posicionando a câmera atrás de grades. A revisão de alguns filmes nos fazem admirar ainda mais o cuidado cênico de um cineasta. Antes do antológico desfecho, Shyamalan já nos informa que aqueles personagens estão “presos” às suas respectivas naturezas e a uma particular relação de dependência. Elijah é o rei da persuasão e da retórica; no entanto, carrega o apelido de “vidro”, o que é justificado numa sequência em que ele prova ser incapaz de descer uma simples escada. Como em todo bom filme de origem de “herói”, há um momento em que David testa seus poderes a fim de descobrir se é, de fato, dotado de indestrutibilidade e uma força descomunal. Seus poderes não param por aí: David é capaz de pressentir crimes futuros e a identidade dos bandidos. 

O conflito interno do protagonista, que precisa decidir se acredita nas evidências e se está disposto a aceitar seu destino, é brilhantemente traduzido por Bruce Willis, que oferece a melhor performance de sua carreira. Seus olhos e sua voz transmitem uma melancolia retida; uma desesperança que nem ele consegue explicar. Por mais introspectivo que David seja, Willis expõe, sutilmente, a felicidade que surge com a nova descoberta. A cena em que ele levanta pesos ao lado do filho e aquela em que, discretamente, mostra o jornal para o mesmo são exemplos claros de alguém com o ânimo renovado; alguém que encontrou um significado e um horizonte, o que é refletido no sopro de ar fresco que renova as esperanças de David e Audrey por um casamento estável. 

Shyamalan investe num realismo sombrio, marcado por uma fotografia de contornos soturnos e frios. A violência quando, enfim, dá as caras, não é estilizada como nos filmes de herói, mas crua. A direção de arte contribui para a construção da imagem de homem “comum”, sendo especialmente marcante na caracterização de Elijah. A galeria e seus espaços pessoais são dominados por revistas em quadrinhos e referências que ratificam seu fascínio pelo mundo das fantasias. O roxo, presente em paredes, vários cômodos e em sua roupa, é o símbolo de um homem que quer ser identificado de uma maneira específica. David tem a sua capa e Elijah, o roxo, cor associada à morte. “Agora que sabemos quem você é, eu sei quem eu sou”. Todo vilão precisa de um herói. Os vilões só encontram sentido para suas existências na presença de um herói. E, como o próprio Elijah menciona, vilões e heróis carregam características opostas. Samuel L. Jackson compõe um personagem complexo, frágil, doentio e humano em seu grito de desespero. 

“Corpo Fechado” é a obra prima de um diretor que se perdeu no meio do caminho.

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