Peter Blood é um médico, não um homem da luta. Ele cura, não mata; busca a paz, não a guerra. Ao ser visto cuidando de um rebelde gravemente ferido, as autoridades locais o levam ao tribunal, onde é condenado à morte por enforcamento. Diante do júri, o protagonista é o único entre os acusados de traição que se declara “totalmente inocente”. “Não temos tempo para isso” – são carrascos sentados no trono, não políticos. Por circunstâncias bem amarradas, parte dos prisioneiros é transferida para uma província inglesa, na qual serão vendidos como escravos.
A direção de arte é certeira ao determinar um forte contraste entre os luxuosos aposentos dos poderosos e o porão escuro do navio. Não se trata apenas de injustiça, mas de um descolamento da realidade tão grande, que afetou a mente daqueles escolhidos para os principais cargos. Logo no início, Michael Curtiz filma o rosto de Blood atrás das grades da própria casa, reforçando a dura trajetória que o aguarda e o perigo que corre. A multidão, as chicotadas e o trabalho desumano, ressaltado pelo enorme moinho, são marcas da crueldade e do senso de irmandade que é estabelecido entre os escravos. Apesar da dura realidade, o protagonista não age como um pobre coitado, assumindo um importante papel de liderança. Ele é quem afronta o Coronel Bishop, planeja a fuga e tenta manter os colegas esperançosos.
Enquanto isso, o roteiro fomenta uma interessante relação entre Blood e Arabella, sobrinha de seu rival e responsável por seu passe. Ela fica encantada com sua forte personalidade, todavia, por enxergá-la como “a mulher que o comprou” e por desprezar seu sobrenome, o protagonista mantém uma certa rispidez nas interações. Na medida em que Arabella livra Blood de possíveis punições, a situação muda de figura. Em meio a natureza e a tons claros, ele pergunta: “o diabo tem um anjo de sobrinha?”
Na noite da tão aguardada rebelião, os espanhóis invadem o território com a intenção de saquear os nobres ingleses. O jogo fica ainda mais simples para o protagonista e sua trupe, que enfrentam as sombras e a fumaça para roubar um navio e assumir o posto de piratas, reis dos mares. Em um excelente exemplo de economia narrativa, acompanhamos as batalhas e vislumbramos a imponência de Blood, agora chamado de capitão.
Antes de embarcarem em tal jornada, o grupo, regido pelo protagonista, reafirma o pacto de sangue. Eles são irmãos e caçadores, seres sem pátria, regidos por vingança e por um código de honra específico. Gradualmente, notamos uma considerável diferença nas posses e nos figurinos dos piratas, respeitados e conhecidos por todos. A montagem, através de fusões, salienta a distância e o laço entre Blood e Arabella. Uma transição é especialmente fantástica. A vemos num carro e, do asfalto, somos levados ao vasto oceano – estão em superfícies opostas.
Levasseur é um outro pirata de renome, no entanto, diferentemente do protagonista, é movido por ganância. A rivalidade é instaurada sem alarde e quando o francês captura Arabella, sem conhecê-la, temos certeza de que as coisas não acabarão bem. Poucas sequências de duelo são tão elegantes em sua coreografia e bem montadas. A luta se confunde com uma dança e a vitória de Blood, frisada pelo corpo caído de Levasseur, se assemelha ao desfecho de uma ópera.
As posições se invertem: o protagonista compra Arabella e ela despreza o seu novo ofício – a ironia é deliciosa. A tripulação não está no navio pelo ouro, mas pela sensação de pertencimento e pelo carinho que nutre por seu capitão. Se a rota é direcionada às questões de seu coração, eles não se opõem. Blood quer deixar sua amada em casa, em segurança, e sabe que, provavelmente, terá que enfrentar Bishop, que está atrás de sua cabeça.
Perto do destino, o grupo avista um navio francês – a essa altura, França e Inglaterra eram rivais – e riem quando escutam a proposta de Willoughby, responsável por Arabella. Ajudar a Inglaterra? Como assim? O antigo rei foi afastado e o atual compreendia a importância e os valores dos ex-escravos. Diante de um novo cenário, repleto de oportunidades e possibilidades, os piratas hasteiam a bandeira de sua nação. Novamente, Curtiz impressiona pelo tom épico que imprime, numa batalha dominada por ações coordenadas num espaço pequeno.
O desfecho não poderia ser mais prazeroso. Blood era o carrasco de Bishop. A verdade é que “Captain Blood” não seria um clássico sem Errol Flynn, que esbanja carisma, imponência e charme sem qualquer esforço. Sua interpretação depende de uma considerável força argumentativa e, sempre que ele surge, domina a tela completamente.