Bobby Dupea é um sujeito complexo e nada fácil de lidar. Ele se afastou de sua família e vive uma vida errante, atrás de pequenos momentos de satisfação. O protagonista é existencialmente contraditório. Teme a solidão, mas precisa de espaço, sozinho; quer uma vida melhor, confortável, porém destrata seu amigo que tenta lhe dar dicas positivas para aquele fim; quer encontrar alguém especial e se apaixonar, no entanto, despreza a sua companheira, Ray, e parece não ser capaz de amar, nada ou ninguém, nem a si mesmo.
“Five Easy Pieces” pode ser descrito como uma sucessão de momentos orgânicos, que fornecem um retrato íntimo e reflexivo sobre um homem que vive em um estado de profunda infelicidade e desconexão.
Bobby trabalha em uma plataforma de petróleo, à noite joga boliche com seu único amigo e, às vezes, sai com prostitutas. Quando o trânsito está impossível, ele sai do carro, invade um caminhão e começa a tocar piano.
Bobby tinha potencial e cresceu em uma família de músicos. Por que optou pelo trabalho braçal? Não há uma resposta certa. Talvez o glamour da vida de artista o incomode ou talvez o problema seja a sua família.
O protagonista não se cansa de insultar e menosprezar Ray, que é uma criatura frágil e carente. Claramente não suporta o jeito da garçonete, mas não consegue abandoná-la. Sempre que as coisas caminham para essa direção, Bobby decide se comportar. Certas palavras conquistam Ray rapidamente e o protagonista as conhece de trás para frente.
Em um cotidiano movido por situações nada estimulantes e um emprego detestável, Bobby não suporta a ideia de chegar em casa e não encontrar ninguém, ainda que suma por várias noites e durma com prostitutas. Ele é egoísta e medroso. Assumir compromissos parece ser um grande problema em sua vida, provavelmente o maior. Segurar o bebê do melhor amigo lhe dá calafrios, assim como escutar a frase “eu te amo”, e, ao descobrir que seu pai estava terrivelmente doente, Bobby não demonstra sentimentos.
O protagonista não é uma má pessoa, apenas não faz a menor ideia de quem é e de que rumo sua vida terá.
Ele então se demite e parte para se despedir do pai. A casa não parece trazer boas memórias, seu rosto denota um misto de emoções, sendo a melancolia a principal. Seu progenitor não o reconhece, o que dói bastante. No entanto, são as melodias do piano que verdadeiramente o machucam. Catherine e seu marido, Carl, são músicos profissionais e praticam numa sala particular.
Ela é belíssima e desperta sentimentos desconhecidos em Bobby, que foge do desinteresse habitual, percebendo que a vida talvez não seja apenas uma sucessão de erros, fugas e monotonia.
Carl torceu o pescoço e anda desconjuntado. Bobby adora fazer piadas sobre o pobre coitado, não só porque seu jeito de caminhar realmente é engraçado, mas porque aquele é o seu grande adversário. O protagonista pergunta quando poderá ver Catherine. “Apenas depois de amanhã. Você estará livre?”, ela responde, devolvendo a pergunta. “Acho que sim”, retruca ele, com seu típico sarcasmo.
Catherine não entende a sua opção por desistir da carreira de pianista e pede que Bobby toque uma música. Não é algo que lhe traz conforto, mas o protagonista a obedece sem pensar duas vezes e a encanta, em uma das cenas que melhor sintetizam a sua personalidade difícil. Os dois passam por momentos íntimos e prazerosos. Bobby parece mais radiante e alegre, até que Ray surge e estraga o seu momento.
Longe de Catherine e sendo obrigado a escutar baboseiras pretensiosas de alguns amigos da família, ele volta a ser aquela figura inquieta, agressiva e direta. Tudo que Bobby quer é falar com seu grande amor, expor seus sentimentos e experimentar o lado bom da vida. Nada é tão simples e Catherine resume perfeitamente o protagonista, explicando porque não poderia abandonar sua estabilidade e tranquilidade por um homem que não valoriza absolutamente nada.
Seu monólogo com o pai é belíssimo, uma espécie de redenção pessoal antes de voltar à sua sua insignificante e vazia existência.
Bob Rafelson não está interessado em montar uma trama. Seu filme é brilhantemente estruturado, permitindo que o espectador compreenda genuinamente o protagonista e passe a respeitá-lo como um ser humano falho, frágil e atordoado.
Sua direção é marcante. Rafelson utiliza bastante a câmera na mão e traz um senso de animosidade forte, principalmente na sequência em que Bobby transa com uma prostituta. Seus planos gerais exploram as paisagens desérticas dos campos de petróleo e a frieza da ilha – ambos belíssimos.
Os enquadramentos de Rafelson dizem bastante sobre a relação entre os personagens. Quando encontra sua irmã, Bobby a abraça amorosamente e o diretor reforça o afeto com um plano fechado. Em contrapartida, ao lado de Ray, o protagonista sempre está distante, seja física, seja emocionalmente. Sua sutil movimentação de câmera na cena em que Bobby toca piano para Catherine é especial.
A direção de arte trabalha bem os espaços. O apartamento na Califórnia é decadente, assim como os restaurantes e ambientes frequentados pelo protagonista. Em Washington, a casa é muito mais elegante, entretanto, esbanja frieza e melancolia. Os porta-retratos são de um período que nunca mais retornará. A fotografia reforça essa sensação, iluminando apenas a sala de jantar, único lugar no qual os personagens dão boas risadas e se descontraem um pouco.
A montagem é efetiva, principalmente por conferir leveza e humor à narrativa. Os cortes são precisos e apresentam um timing cômico impressionante.
Dito isso, o principal motivo pelo êxito de “Five Easy Pieces” é Jack Nicholson. Sua performance é maravilhosa em todos os níveis. Seu sarcasmo e talento para o humor elevam o material – a cena da torrada é sensacional – e sua facilidade em ser agressivo e enfático é notável. Talvez essas sejam as facetas mais identificáveis, afinal, Bobby é um personagem temperamental, contudo, o que mais chama a atenção é a sua aptidão para demonstrar sensibilidade a partir de pequenos gestos e movimentos e a sua capacidade para o drama. Seu rosto diz coisas que palavras jamais poderiam expressar. Nicholson dá vida a um sujeito intransponível, contraditório e desesperado e sua composição não poderia ser mais perfeita. Ele oferece uma aula de interpretação – possivelmente a melhor de sua carreira – e transforma “Five Easy Pieces” em um verdadeiro marco para o cinema da “Nova Hollywood”.
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