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Ao longo das décadas, através de transformações culturais e sociais, alguns filmes podem ganhar novos significados. Esse é o caso de “Bob & Carol & Ted & Alice”. Ele não se tornou datado, pelo contrário, apesar de, certamente, ressoar de forma diversa para cada geração.

Os Estados Unidos, em meio ao declínio da cultura hippie, passavam por um momento de libertação sexual. No filme, Bob, um documentarista, e Carol, sua esposa, passam um fim de semana numa espécie de retiro espiritual, onde participam de gincanas e interagem com desconhecidos. A câmera, mantida próxima dos rostos, e a pequena sala formam uma atmosfera íntima. Bob está ali para finalizar um filme, no entanto, aos poucos, o casal se vê vulnerável e disposto a experimentar um novo estilo de vida.

Bob e Carol, agora, investem na honestidade absoluta e no fim da hostilidade como a base da relação matrimonial, o que, a princípio, soa normal. Mas não, estamos diante de pessoas que precisam saber, a todo instante, como os demais se sentem sobre qualquer assunto. “Como você se sente sobre o meu cabelo?”, pergunta Bob a Ted, seu melhor amigo, cuja reação incrédula não poderia ser mais apropriada. Até o coitado do garçom, que só queria registrar os pedidos, é obrigado a expor seus sentimentos.

Eu costumo escrever nas minhas críticas que os seres humanos ficam presos a amarras sociais, perdendo qualquer senso de individualidade. Esse filme me convenceu de que convenções existem por um motivo óbvio: sem regras, as pessoas se transformam em idiotas, sem noção do aceitável e do ridículo. Bob e Carol querem reeducar seus amigos, com um tom professoral que denota uma falsa superioridade. Ted, ainda não intoxicado por tamanha besteira, brinca: “Eu sinto que você deve pagar a conta”.

Eles não se drogam, mas agem como se estivessem cronicamente entorpecidos por uma liberdade vazia. Após chegar de São Francisco, numa viagem de trabalho, Bob, seguindo sua nova doutrina, conta para a esposa que se relacionou sexualmente com outra mulher. A passividade e a racionalidade de Carol são irritantes, pois a impressão é de que não estamos assistindo a um casal de seres humanos, apaixonado, discutindo sobre traição. “Você está compartilhando algo tão pessoal. Eu me sinto emocionada que confie em mim”. Por um instante, eu me peguei questionando meus próprios valores: será que esses dois representam o amadurecimento do casal que discerne envolvimento carnal e afetivo? Será que eu sou um grande moralista?

A curiosidade e as reações de Carol ressaltam um ciúme velado, nos levando a conclusão de que, por trás da máscara da confiança incorruptível e da valorização das mais diversas experiências, existe insegurança e medo. Eles monitoram o nível de honestidade alheio constantemente, afinal, são gurus, os paladinos dos “bons costumes” (e da libertinagem). Carol sente a necessidade de contar aos amigos sobre a traição de Bob. O tom suave e alegre de sua fala aborrece Ted e Alice, que ficam chocados com tamanha bizarrice. Diferentemente dos “novos hippies”, o casal “normal” acredita no respeito e na fidelidade. Será?

Os seres humanos, naturalmente frágeis, precisam que seu microcosmo seja um exemplo de estabilidade e nitidez. De repente, Alice fica, simultaneamente, horrorizada, escandalizada e curiosa. Ted é dominado por uma vontade incontrolável de transar, mesmo que sua parceira não esteja no clima – estar perto de pessoas que abandonaram a civilidade desperta o animal interno. Os personagens afirmam que sexo é apenas um “divertimento físico, o que, de certa forma, salienta um profundo desconhecimento acerca do amor e do próprio ato sexual.

Na terapia, Alice confunde o nome do marido e relata não saber mais do que gosta ou no que acredita. Bob, sempre vestido como um garotão que acabou de voltar de “Woodstock”, entra na mente de Ted, que admite que quase teve um caso com uma antiga secretária. Carol, então, revela que está com um amante no quarto, despertando a ira do marido. O canastrão se recompõe e retoma a persona que encarnou desde o retiro espiritual, chegando ao seu ápice quando convida o homem que estava “finalizando o serviço” para tomar um drinque.

-Você tem muita classe.

-Obrigado.

A última sequência, na qual os quatro se reúnem num hotel em Las Vegas, sintetiza a obra. Poucas vezes eu me vi diante de figuras tão pretensiosas, egoístas, falsamente bem resolvidas e hipócritas. “Eu não pude me conter”, diz Ted, ao confessar um caso que teve em Miami. Essa é a grande questão: os seres humanos têm a obrigação de se conter. O dogma da aceitação é um retrocesso ao período paleolítico. Existe uma diferença entre abraçar desejos e esquecer o limite do aceitável. “Qualquer coisa que você fizer estará bem para mim” – isso não é amor, é o descaso travestido de desbravamento.

A imagem dos quatro na cama é poderosa e a orgia, tomada pelo silêncio e por rostos temerosos, no fim, acaba sendo reveladora. Paul Mazursky sabia que um tema controverso e delicado assim só poderia ser abordado no formato de comédia satírica e ácida. Admitir uma traição é somente a confidência de uma fraqueza; ter autocontrole, empatia e respeitar a família que foi estabelecida ao longo dos anos é uma demonstração de amor. Mazursky evita o drama, apostando num absurdo necessário e que coloca o espectador para refletir. Os diálogos assimilam a pungência do discurso – cujo principal alvo é a burguesia americana – e um humor desconcertante. Sua direção é bem direta, sem maiores firulas e a montagem, a partir de cortes secos, mantém o timing cômico impecável.

Elliott Gould é o grande destaque do elenco, provando, desde o início de sua carreira, ser um ator eclético e engraçadíssimo.

A liberdade sexual é, na verdade, um sintoma de infelicidade e de um profundo vazio existencial. Perguntem à Giacomo Casanova…

“Bob & Carol & Ted & Alice” é uma obra prima atemporal.

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