Baseado em duas histórias reais, “Julie & Julia” é um filme sobre projetos de paixão; sobre mulheres que, presas à pacatez, utilizaram seus dons para realizar algo importante. Na década de 50, Julia Child acompanha Paul, seu marido, que é embaixador e foi transferido para Paris. Sem planos, Julia é um ímã de boas vibrações. Seus figurinos denotam pureza, assim como seu sotaque e risada inconfundível. Eis que, apaixonada pela culinária francesa, Julia decide se aperfeiçoar na arte gastronômica. Seu espírito competitivo e amor pela comida ficam evidentes quando a vemos cortando pilhas de cebola numa velocidade assombrosa, logo após “falhar” numa tarefa. Estrangeira, Julia é mal vista pelos colegas e por uma das professoras, que faz o possível para desencorajá-la. Disposta a colocar seu sonho em prática, Julia e duas amigas (sendo que uma delas é um peso morto) elaboram um gigantesco e acessível manual sobre a culinária francesa para donas de casa americanas. Nora Ephron faz questão que seu filme brilhe em cada frame, proporcionando ao espectador uma experiência leve e deliciosa. As atraentes e belas cores, destacadas pelos excelentes trabalhos de direção de arte e fotografia, aliadas à arquitetura parisiense, captam o espírito de Julia, que não abre concessões para seguir em frente.
Em 2002, acompanhamos Julie Powell. Seu trabalho, um dos mais ingratos possíveis, salientado por planos fechados, é calcado em atender telefonemas de vítimas dos ataques de 11 de setembro e de pessoas que reclamam das obras no World Trade Center. O metrô lotado e o cubículo onde passa a maior parte do dia são marcas de sua resignação perante ao sistema. Julie, acompanhando a tendência do momento, abre um blog para falar sobre culinária, focando em todas as receitas disponíveis no livro de Julia, de quem é fã inveterada. A montagem, a partir de cortes que estabelecem paralelos notáveis, destaca as diferenças e uma espécie de ligação espiritual entre as duas – mulheres de tempos distintos. Enquanto Julia vive em excepcionais residências da embaixada, Julie se habituou ao Queens; a primeira usa uma máquina de escrever, a segunda, um computador. Há de se destacar, novamente, a direção de arte, que, ao caracterizar o apartamento de Julie como bagunçado e pequeno, evita que o espectador sinta pena da personagem; pelo contrário, é o tipo de “caos” que está ligado ao carinho de um casal jovem que se acolhe e encontra a beleza na simplicidade.
Os planos-detalhe dos ingredientes, o fascínio pelas minúcias culinárias, as dificuldades que ambas encontram para alcançarem reconhecimento e a preocupação com a qualidade de seus trabalhos são semelhanças significativas. A história de Julie é q mais interessante. Embora seja carismática, ela transmite uma insegurança extremamente relacionável e um medo genuíno de ficar eternamente no cubículo. E, diferentemente de Julia, que já era uma lenda em 2002, Julie é apenas uma pessoa lutando por seu espaço no mundo. Os maridos, coadjuvantes que assumem o protagonismo nos momentos certos, são figuras conciliadoras e sensíveis – outro ponto em comum entre elas. Paul poderia dar algumas patadas e focar exclusivamente na sua carreira, mas não, seus gestos são sempre empáticos, mesmo quando tudo parece conspirar contra ele. O plongée adotado por Ephron numa sequência em que o casal dança, além de lindíssimo, sintetiza o brilho daquela relação. Eric gosta de ver o copo meio cheio e lida com o egoísmo de Julie, que, determinada a fazer o blog funcionar, esquece do casamento. Eu sei que o ditado não é bem assim, mas, aqui, podemos dizer que “por trás de toda grande mulher existe um grande homem”. O roteiro também pontua o fundamental discernimento que devemos fazer entre ídolo e ser humano. No fim, o que interessa é a imagem que carregamos conosco; a idealização de um colega que nunca existiu.
Meryl Streep e Amy Adams merecem aplausos por carregarem em suas interpretações todas as sensações postas em tela por Nora Ephron e sua equipe. Stanley Tucci e o subestimado Chris Messina são as engrenagens que mantêm suas parceiras radiantes. Cercado por uma narrativa inteligente, “Julie & Julia” é um filme surpreendentemente cativante.