Em 1989, Hal Hartley deu início a uma carreira singular, colocando-se como uma espécie de Nicholas Ray “indie”. Josh busca uma carona, todavia, ao falar de onde veio, é expulso do veículo. O ex-presidiário é socialmente rejeitado e Josh carrega um estigma em Long Island. As pessoas não estão interessadas no ser humano, mas em boatos e histórias mal contadas. No passado, Josh teria matado, acidentalmente, a irmã de Pearl e, após uma discussão, o pai da moça. Ele é mecânico, não bebe e está sempre de preto. Audry não vai à escola, não quer fazer faculdade, se demitiu e tem certeza de que o mundo está prestes a acabar. Na mesa, a câmera foca nela, isolando-a dos pais, cujas vozes ecoam – artifício este que ressalta o sentimento de incompreensão da jovem. Emmet, seu namorado, se veste como um futuro banqueiro, enquanto Audry, tal qual Josh, opta por roupas pretas.
-Sei que anda confusa.
-Confusa, não. Estou deprimida.
-Tanto faz.
Em um mundo de aparências e futilidades, a saída, às vezes, é o extremo oposto. Não é uma posição confortável, mas Audry está disposta a confrontar o padrão. Hugo, seu pai, não está preocupado com o que a interessa, mas no seu “projeto de filha”. Ela irá à universidade x, estudará comunicação, precisa estabelecer alguma renda e não pode sair com qualquer garoto. É uma relação calcada em acordos nos quais Audry busca pequenas brechas “contratuais” para trilhar um caminho minimamente pessoal. Josh consegue um emprego na oficina de Hugo. Há algo de místico em sua serenidade; ele parece cansado de carregar o fardo de “assassino” e fala abertamente sobre a solidão que assola sua existência. Em um mundo no qual a ideia vale mais que a verdade, restam poucas esperanças para Josh e Audry. A chave de fenda roubada por ela é uma pequena demonstração de carinho, no entanto, o pai, com sua retórica empresarial, a obriga a se afastar do delinquente. Qual a melhor forma de reintegrar um ex-condenado à sociedade? Ignorá-lo como se fosse um monstro? Audry enxerga a alma, foge da obviedade.
“Tenho todo o tempo do mundo” não é o tipo de frase que uma garota preparada para o fim do mundo proferiria – o amor e sua magia. Em sua crítica ao capitalismo, Hartley desfigura Audry, transformando-a, por influência do pai, em uma modelo cujo empresário tenta usá-la sexualmente. Os óculos escuros, o batom borrado e sua imagem na piscina formam uma caricatura; uma jovem que, desde cedo, foi ensinada a seguir o sistema, não seu coração. A vida, da escola ao caixão, é um longo jogo de negociações e acordos; quem conseguir os mais vantajosos, prosperará. O pai, vestindo a carapuça moralista – além de ridículas camisas apertadas -, fica enfurecido ao descobrir que sua filha não posará somente com suéteres e capas de chuva. Apesar disso, Hartley não o vilaniza, só aponta para uma paternidade “inconscientemente” danosa. Em um universo corrompido pela ganância, os rejeitados não têm vez. Hartley, um mestre em arquitetar desfechos belíssimos, combina simbolismo e poesia na medida ideal. Assim como Nicholas Ray, Hartley, à sua maneira, sensibiliza seres marginalizados, compreendendo seus medos e anseios. Josh e Audry são personagens relacionáveis, afinal, visam apenas a felicidade no seu molde mais genuíno. Ser o “estranho” ativa censores que a maioria, impregnada por convenções, desconhece.
Hartley caracteriza sua narrativa com elementos que se tornaram essenciais em sua carreira. A trilha sonora, o timing de certas decisões, a inserção de legendas, as brigas com aspecto cômico e os espaços vazios servem à concepção de um universo bastante peculiar. O mesmo vale para as interpretações, que fogem do naturalismo. Os atores se mantêm num tom muito específico, o que é mérito de um cineasta em total controle de sua arte. Adrienne Shelly e Robert John Burke, colaboradores habituais de Hartley, estão irretocáveis. Aqui, pouco é muito.
“The Unbelievable Truth” é uma das melhores estreias da história da sétima arte.