Nove anos após realizar o que talvez seja o filme natalino mais macabro de todos os tempos, Bob Clark encantou o mundo com “A Christmas Story”, um doce e honesto retrato sobre a infância.
Ralphie quer um rifle de brinquedo, mas todos dizem que é perigoso para os seus olhos.
O grande trunfo é a utilização da narração do protagonista já adulto, que dá uma visão do passado, simultaneamente, madura, ingênua e irreal. É um homem quem fala, no entanto, entendemos todos os desejos, medos e sentimentos de Ralphie. De certa forma, Clark quer dizer que ainda que o tempo passe, guardamos uma certa essência e conseguimos identificar o passado com a mesma intensidade.
Não há uma trama específica, acompanhamos Ralphie e temos acesso a situações contadas com uma enorme riqueza de detalhes que, à primeira vista parecem pequenas, mas aos olhos de uma criança são fundamentais.
Um amigo aposta com o protagonista que sua língua não ficará presa em um poste e acaba se ferrando. A professora olha pela janela e vê o pobre coitado se debatendo de dor, então pede para o culpado se entregar, enfatizando que o remorso é a pior punição. Em outro filme, o personagem provavelmente assumiria a culpa, entretanto, crianças sabem que a maior punição é o castigo.
A mesma professora pede para os alunos entregarem uma redação sobre o que querem ganhar no natal. Ralphie volta a falar sobre o tal rifle e acredita ter escrito uma obra prima, no entanto, tudo que recebe é um C+, com direito a um recado reforçando o perigo que o brinquedo poderia causar.
Em determinado momento, o pneu do carro fura e sua mãe pede para o protagonista ajudar o seu pai. O que para o espectador é normal, para Ralphie é uma oportunidade de mostrar valor, de ser importante. Na mesma cena, ele acaba dizendo um palavrão e em vez de agir naturalmente, imagina a punição mais severa possível. Nesse caso, hei de admitir que o protagonista estava certo, afinal, sua mãe o força a chupar uma barra de sabonete.
Se ninguém quer lhe dar o rifle, Ralphie recorre a única pessoa que diria sim: o Papai Noel. A sequência é icônica, tensa de uma forma especial e engraçada pelo recado do “bom velhinho” – exatamente igual ao dos demais.
Há um garoto que espanta o protagonista e seus amigos. Crianças estão aprendendo a lidar com os seus sentimentos e o medo é tanto, que o diretor precisa acelerar a corrida do grupo ao passar pelo território inimigo. A raiva é igualmente poderosa e, em um momento de descarga de adrenalina, Ralphie espanca o “vilão”, provando que ainda não domina suas próprias emoções.
A decepção ao perceber que uma mensagem subliminar deixada em seu programa de rádio era apenas uma propaganda de achocolatado também é nítida e genuína.
O dia do Natal chega e é como se Ralphie fosse dominado por uma força maior, um estado de puro êxtase. Alguns presentes são descartáveis, outros são interessantes, mas cadê o rifle? Será que ele ganha?
São situações simples que constituem esse filme e a narração ajuda a dar profundidade, humor e um olhar apurado. Entendemos cada reação do protagonista, já fomos crianças e é um verdadeiro deleite acompanhar a sua trajetória.
O pai de Ralphie é meio pão duro e rígido, contudo, ama profundamente os seus filhos e expõe isso no fim, com um belo gesto. Qualquer “presente” é um prêmio, tudo que não tire um tostão de seu bolso é motivo de comemoração, ainda que seja um abajur cafona cuja base é uma perna sensual.
Em contrapartida, a mãe é mais protetora e sensível, o que não faz dela menos rígida do que o pai – o sabonete é um exemplo claro. A relação do casal é estável, porém o abajur representa um forte e silencioso embate, que termina de maneira “trágica”.
Além da narração empática, diria que o grande destaque são as sequências oníricas – perfeitamente inseridas pela montagem -, nas quais Ralphie imagina todos os seus dilemas sendo resolvidos da forma mais infantil e pura possível. As cenas são tomadas por uma dramatização excessiva que só poderiam sair da mente de uma criança.
O diretor Bob Clark brinca com a nossa perspectiva, tornando situações simples em extenuantes e tensas, utilizando planos cada vez mais fechados, auxiliados por cortes dinâmicos. Assim como a narração, esses recursos são usados para conectar o espectador com os anseios do protagonista.
Visualmente, “A Christmas Story” é vibrante, nostálgico e belo. A luz na casa da família Parker salienta o afeto que um nutre pelo outro e a frieza da neve, que poderia ser um elemento melancólico, serve para ressaltar o clima natalino.
Peter Billingsey faz de Ralphie um garoto fácil de se simpatizar. Todos nós passamos por essa fase e o ator oferece uma performance genuinamente adorável.
Jean Shepherd encontra um tom perfeito para a narração, sem torná-la excessivamente madura nem boba. É um adulto que se recorda da infância com vivacidade e carinho.
“A Christmas Story” é um filme que respeita as crianças e relembra a todos o porquê do Natal ser a época mais especial do ano.
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