Crianças costumam olhar debaixo de suas camas e atrás de portas, temendo o encontro com um monstro terrível. Bem, nessa obra prima da Pixar, essas criaturas de fato existem e dependem de gritos para gerar energia para as cidades. Crianças são tóxicas em Monstrópolis, logo, é no mínimo curioso que os monstros tenham que assustar os seres que mais lhes causam medo.
“Monstros S.A.” é um dos filmes mais engraçados que já assisti. Funciona graças as interações entre os personagens, situações muito bem orquestradas e um roteiro que esbanja sensibilidade.
Os assustadores são os heróis da cidade, são as suas habilidades que disponibilizam energia elétrica para os demais. Eles aparecem em câmera lenta, quase como Deuses. Dentro da empresa, obviamente, existem rivalidades, sendo a principal entre Sulley e Randall – ambos disputam o posto de melhor assustador.
Entretanto, a grande relação estabelecida pelo roteiro é entre Sulley e seu melhor amigo/coach, Mike Wazowski. Enquanto o primeiro é enorme e “temível”, o segundo é literalmente uma bola verde com um olho. A graça do filme já parte dessa diferença, que se acentua no contraste entre suas personalidades. Sulley é sensível, ingênuo e, mesmo com sua reputação, é repleto de meigas pintas roxas em seu corpo, em contrapartida, Mike é inquieto, perspicaz e falastrão. A Pixar sempre foi muito cuidadosa no design de seus personagens e aqui não é diferente, optando por caracterizações que tornam cada monstro único e memorável. A camuflagem de Randall o deixa mais imprevisível e letal. O mesmo pode ser dito de Waternoose, de olhos espantosos, que, na sua primeira aparição, surge das sombras, com o seu figurino majoritariamente encarnado.
Monstrópolis é uma cidade como qualquer outra, tem restaurantes luxuosos, semáforos, edifícios e carros. Mike tem uma namorada e declama para si próprio: “Eu sou tão romântico, que às vezes tenho vontade de casar com a minha pessoa”.
Tudo funciona para a dupla. Entre sustos, recordes e reconhecimento, eles passam desodorantes com nomes suspeitos e treinam forte para o próximo dia. O caos se instaura quando Randall, tentando ganhar pontos ilegalmente, rouba uma porta e acaba deixando uma garota escapar. Adivinhem no colo de quem ela vai parar? Se Mike e Sulley já nos presenteavam com diálogos organicamente engraçados, a presença de Boo torna as coisas ainda mais interessantes, começando pelo desespero de Sulley, que corre desesperadamente de uma pobre criança. Os relatos dos monstros dão a entender que a cidade foi invadida por um ser poderosíssimo e Mike bola planos mirabolantes para eliminá-la. Nesse sentido, a montagem acerta no timing cômico, apostando na doçura e fofura de Boo. A cena no restaurante é caoticamente hilária, principalmente pela forma que Sulley interrompe o jantar romântico de Mike.
Entre todos os personagens, o único capaz de enxergar algo além do pré-estabelecido, é justamente o grande assustador. Sulley vê Boo bocejando e fazendo um desenho dos dois de mãos dadas. Talvez aquela garotinha não seja tão tóxica assim. Mike está preocupado em manter sua vida perfeitamente intacta e o restante pensa apenas na aparência da empresa, que poderia fechar com uma criança à solta.
Waternoose deixa claro que faria qualquer coisa para manter a sua empresa de pé e Randall, sempre ardiloso, quer apenas uma oportunidade para jogar Sulley fora do mapa.
O diretor Pete Docter sabe criar distrações, elevar a tensão de determinadas sequências e conduzir momentos mais frenéticos, no entanto, a grande qualidade de sua direção é a sensibilidade. Entender o que é capaz de humanizar um monstro e apresentar diversas cenas absolutamente adoráveis.
Mike quer apenas se livrar de Boo, não se preocupa com o futuro da pequena humana nem com as investidas de Randall. Só quer a sua vida de volta e não entende porque Sulley se importa tanto com a criança. Algo despertou o coração daquela montanha de pelos, que se vê como um pai.
“Monstros S.A.” é um filme sobre amizade, não por deixar uma mensagem significativa, mas por estabelecer uma dinâmica relacionável e admirável entre seres completamente diferentes. Eles são amigos porque se respeitam, o que Mike só entende no final, chegando até a se afeiçoar por Boo.
Espécies diferentes não deveriam criar barreiras e se considerar tóxicas. Sulley enxergou apenas o óbvio e provou que para gerar energia, não era necessário assustar os outros. Rir é a solução. A empresa fica mais colorida e viva sem a corrupção de Waternoose e a inveja de Randall.
A despedida entre Sulley e Boo é uma das grandes provas de que a Pixar sabe mexer com o emocional do espectador, seja lá qual for a sua idade. O desfecho brinda tudo o que assistimos. A escolha do diretor de mostrar apenas a reação de Sulley é perfeita, deixando para quem está vendo o filme a oportunidade de se imaginar por trás dos olhos do protagonista.
A trilha sonora talvez não seja tão icônica quanto a de “Toy Story”, contudo, é igualmente fantástica. Randy Newman aposta em batidas jazzísticas – os créditos iniciais são geniais.
Gosto bastante de certos detalhes na direção de arte, como as poltronas usadas por Mike e Sulley – proporcionais às suas cores e tamanhos – e a porta vermelha na sala de Waternoose.
A montagem, além de potencializar o humor, é fundamental nas sequências mais tensas, principalmente a das portas, em que o dinamismo dos cortes deixa o espectador ainda mais apreensivo.
As interações entre Roz -chefe de um dos departamento da empresa – e Mike são hilárias, pelo confronto entre frieza e malandragem. Por sinal, poucos personagens me fazem rir tanto quanto Mike Wazowski.
Nunca achei que diria isso, mas a dublagem desse filme é irretocável, conseguindo a proeza de ser melhor do que a versão original, cujo elenco é formado por nomes de peso: John Goodman, Billy Crystal, James Coburn e Steve Buscemi.
Sérgio Stern e Mauro Ramos merecem elogios pelo fabuloso trabalho.
“Monstros S.A.” é possivelmente o ponto mais alto dentro da filmografia de uma produtora famosa por não cometer erros.
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