Em “Distant Voices, Still Lives”, Terence Davies realiza um poderoso estudo sobre as memórias. A linearidade é negada, nem sempre entendemos onde estamos, o que ressalta o cuidado do cineasta, que compreende a essência bagunçada e seletiva das lembranças. Outro elemento incrível, que dá a ideia de uma “foto em tempo real”, são os enquadramentos centrais, com os personagens alinhados, olhando diretamente para a câmera.
Eileen está prestes a se casar e lembra do pai. Escutamos os pensamentos de Maisie, sua irmã, que não sente nada além de ódio e nojo pelo falecido progenitor. A foto dele no centro da casa, entre Tony e Eileen, salienta sua presença invisível e danosa. Os flashbacks nos levam a uma residência dominada por tons frios (quase descolorida), pela covardia e pela violência. O porão escuro é o símbolo máximo da opressão. “Ele era bom. Era um bom dançarino”, diz a mãe, justificando a escolha pelo marido. Sua impotência está em praticamente todos os fragmentos do filme, no entanto, fica especialmente evidente quando surge cabisbaixa, repleta de hematomas. Eileen era quem mantinha a relação “menos terrível” com o pai, uma figura, além de abusiva, instável e imprevisível. Sentado à cabeceira, ele fazia o que bem entendia.
Voltando ao casamento, os figurinos e a parede da casa, em tons pastéis, reforçam a melancolia que ainda cerca a família, traumatizada por uma vida calcada no medo constante. “Não sinto nada de diferente”, afirma Eileen. Estamos diante de pessoas que enxergam no matrimônio uma forma de deixar o passado para trás. A questão é que, por mais justa que essa ideia seja, o casamento apressado pode representar um novo pesadelo. No início da relação, o marido de Eileen a presenteava com perfumes caros, todavia, com o passar do tempo, vemos sua verdadeira faceta. Um homem preguiçoso, mal educado e dominador que usa a esposa como empregada e a impede de visitar as amigas. Maisie, em contrapartida, apesar de não receber tanto destaque, se casa com um sujeito, aparentemente, agradável e carinhoso.
Tony, o caçula, é uma figura interessante de se observar. Ele sabe de sua responsabilidade num eventual matrimônio e tenta ser o oposto do pai. Em um período impregnado pelo machismo, Tony é um jovem digno de aplausos e o cuidado que tem com a mãe é bonito de se ver. Ela é, sem dúvida alguma, a personagem mais trágica da história. Seu passado está escrito em seu rosto imutável, que esconde marcas da brutalidade doméstica. Os filhos estão saindo de casa e tentando se desvencilhar do passado; a mãe, apesar do amor que recebe, tem somente a si – não à toa, é, por vezes, posta sozinha no quadro. O desfecho, pelo menos, é otimista e reconfortante.
A obra é dividida em duas partes – a primeira se chama “Distant Voices” e a segunda, “Still Lives”. A mudança na fotografia é considerável, trazendo um pouco de esperança a partir da claridade. Ao longo da narrativa, Davies atribui um caráter salvador à música, sempre presente nas festas e jantares. As pessoas cantam, sorriem e se abraçam em raros momentos de confraternização. No fim, o cinema ganha uma importância similar, com Eileen e Maisie chorando, imersas a um universo encantador e mágico. Davies é um cineasta meticuloso. A câmera é movimentada suavemente, sem qualquer pressa, e tende a expor algo sutil ou que está fora do nosso radar. Seus travellings laterais são de uma elegância ímpar e conferem uma fluidez invejável aos saltos temporais. Dito isso, sua grande marca – citada acima – são os planos estáticos, milimetricamente pensados.
Pete Postlethwaite aparece o suficiente para deixar uma impressão asquerosa e justificar o trauma de uma família inteira. Freda Dowie oferece uma performance introspectiva e dolorosa. Nada revelador é dito, mas sua expressão facial é riquíssima.
“Distant Voices, Still Lives” é um filme ambicioso, original e importante.