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-Por que quer dançar?

-Por que quer viver?

Com essa resposta, Vicky Page convence Boris Lermontov, dono da mais importante companhia de balé, a fazer testes para o seu próximo espetáculo. Mais do que isso; naquele instante, o homem que tem o balé como religião enxergava na pureza de uma jovem dedicada, a sua mártir.

Em um mundo no qual a arte é o estopim, ter que roubar uma composição é pior do que ser roubado. A partir desse entendimento, que serve como elogio, Julian Craster aceita ser o novo regente da companhia. O palco é um mundo à parte, onde a individualidade e brigas por espaço são rotineiras. Os professores são ríspidos e duros, no entanto, perto do descaso de Lermontov, estas características se assemelham a qualidades divinas.

As apresentações são testes de fogo e a câmera emula os rodopios efusivos da protagonista, cujos olhos focam na reação da plateia.

“Vou me casar”, anuncia Irina, uma das principais bailarinas, para a felicidade dos colegas. Lermontov, por sua vez, fica enfurecido. A sala escura e a fumaça do cigarro, que cobre o seu rosto, ressaltam sua frieza e insensibilidade. Em seguida, ele anuncia um novo espetáculo: The Red Shoes, que conta a história de uma garota que é devorada pela ambição de dançar. O tempo passa, o amor e a vida também, mas os sapatinhos vermelhos continuam dançando.

Lermontov almeja o sucesso, todavia, nesse caso, o mais importante é encontrar sua musa, aquela que, custe o que custar, nunca o abandonará. A demissão de Irina é um aviso; não se pode ter os dois, romances são caprichos. Um de seus colegas diz ser impossível modificar a natureza humana e sua resposta é assustadora. “Não? Pode até fazer mais, pode ignorá-la”. A fim de destacar esta fala, os cineastas o posicionam meticulosamente atrás de uma rede – o balé é um contrato de castidade.

Vicky consegue o papel e, ao ser apresentada para outros homens poderosos, é enquadrada entre os braços destes, a partir de um contra-plongée que denuncia a responsabilidade que carregará. Lermontov quer sentir a agonia do corpo e do espírito, quer vê-la psicologicamente desnuda. Eis que chegamos a uma das sequências mais ambiciosas da história do cinema. Powell e Pressburger vão além da apresentação, entrando na psique de Vicky, que encarna a personagem e seus anseios pessoais. Os exuberantes trabalhos de direção de arte e fotografia podem ser encapsulados nesta cena de 17 minutos. A protagonista dança e salta por ambientes de diferentes texturas e tonalidades, o que só é possível graças ao Matte Painting, recurso que confere vida aos cenários e que impressiona pela beleza de caráter artesanal, e ao show de luzes e sombras, que se confundem com a completa escuridão. A montagem, que varia entre fusões e transições abruptas, e os movimentos de câmera, capazes de acompanhar tais mudanças, também são dignos de muitos elogios.

Vicky vira uma estrela e sua parceria com Craster se estende, inclusive, aos palcos. Lermontov molda seres humanos às suas exigências; se apaixonar significa se dispersar; o amor é uma das poucas forças que deve ser combatida a fim de se atingir a perfeição. Ao perceber a situação, seu rosto se transforma num poço de ódio e ciúmes.

Sim, dançarina e compositor se apaixonam, no entanto, o balé é conduzido pelo diabo, disposto a qualquer coisa para separá-los. O embate entre luxo e vida familiar é poderoso e de difícil resolução.

Em outro plano espetacular, vemos Lermontov, após receber a notícia do casamento, num quarto enorme e vazio, com um cinzeiro abarrotado ao seu lado. Desempregado, o casal habita um quarto frio – sem música e dança, assumem a incompletude. O vermelho é a cor mais rica em significados, enfatizando, em momentos distintos, amor, ódio, desejo…

O sapatinho tem uma mitologia própria; com ele, uma vida de conquistas e reconhecimento, sem ele, uma vida simples e feliz. O sapatinho representa o arco da protagonista, cujo desfecho não poderia ser mais apropriado e trágico. No início de sua trajetória, o contra-plongée realçava sua responsabilidade; agora, o plongée evidencia a impossibilidade de escolher somente uma de suas paixões.

Adolf Wohlbrück oferece uma performance impecável. Lermontov nunca perde a pose e mantém uma retórica oleosa, difícil de ser retrucada, até o fim. Ele evita sentimentos e os expõe sutilmente, através de olhares condenatórios e pequenas mudanças na expressão facial. Se Lermontov personifica a arte, podemos considerá-la maldita. A arte não é só aquilo que as pessoas assistem nos teatros, é o que acontece nas coxias e nos ensaios; a exigência descabida e desumana.

Moira Shearer que, por ironia do destino, estreou justamente nesse filme, reúne todos os atributos necessários para interpretar Vicky Page. Sua aparência angelical e cabelos ruivos, somados aos vestidos coloridos do seu figurino, são suficientes para formar uma imagem e tornam sua derrocada ainda mais impactante.

“The Red Shoes” talvez seja o filme mais belo fotografado em Technicolor. Sabem quem guarda os sapatinhos vermelhos originais em sua casa? Martin Scorsese, que, sempre que pode, enaltece a obra definitiva de Michael Powell, seu mentor e amigo.

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