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Chris Kelvin é um psiquiatra que ainda enfrenta o luto pela morte de sua esposa, Rheya, que se suicidou há alguns anos. A baixa profundidade de campo, os planos de suas costas, as roupas e as tonalidades escuras são marcas de um homem que vive um enorme “nada”. O filme se passa no futuro e a direção de arte é certeira ao pontuar isso sutilmente, já que o foco de Steven Soderbergh é o protagonista, não o espaço – a não ser quando este conversa diretamente com a condição do psiquiatra.

Chris é informado de que a última tripulação na estação espacial do desconhecido planeta Solaris está em apuros e ele é a única esperança de trazê-los de volta, em segurança.

Chegando lá, o protagonista se depara com um silêncio idêntico ao que assola a sua alma. Alguns se suicidaram, outros simplesmente sumiram e os sobreviventes se mostram estranhamente resistentes ao retorno à Terra. Gordon avisa que só conversará com Chris depois que ele for afetado. “Eu poderia dizer o que está havendo, mas não sei se esclareceria algo”. A estação extensa e metálica exala frieza, provando ser o ambiente perfeito para explorar a melancolia sentida pelo psiquiatra, que, na primeira noite de sono, entende o porquê do surto geral.

Todos os tripulantes recebem um visitante, alguém que se foi e que é materializado por Solaris aos moldes da mente daquele que sonha. Repentinamente, Rheya surge ao lado do protagonista, como se nada tivesse acontecido. Seu olhar atônito é o mesmo de alguém que acabou de se deparar com um fantasma e ele a despacha para o espaço.

Snow tenta explicar a situação e Chris, agora, mais esclarecido, decide vê-la novamente. Soderbergh evita respostas; sua abordagem no “nascimento” de Rheya é simples e sensível. A intercalação de planos cada vez mais fechados do rosto de Chris e de Solaris ressaltam o fato do planeta dar vida ao inconsciente humano. Temos acesso aos pensamentos do psiquiatra, ao seu relacionamento e ao amor que disponibilizou à única mulher que amou. Quando o protagonista decide dar uma segunda chance ao seu visitante, a montagem muda de transição, partindo para uma fusão, reforçando, dessa vez, a reciprocidade entre Chris e Solaris – antes, a sensação era de um processo intrusivo.

A imagem do casal na chuva, a troca de olhares no trem, o plano-detalhe das mãos entrelaçadas e a primeira noite que passam juntos são fundamentais na concepção de um retrato altamente poético de um belo romance, todavia, são os diálogos casuais e o apoio incondicional que tornam as coisas realmente interessantes. Chris sorria, seus olhos brilhavam; não temos dúvidas de que ele não desistirá tão facilmente de Rheya. Inteligente, a montagem também opta por fades, salientando o caráter longínquo daquilo que estamos vendo. Em uma definição puramente biológica, os visitantes são seres humanos? Não. O que define um ser humano? Moléculas ou sua individualidade? Essa é a grande questão, pois, apesar de se comportar como a falecida esposa do protagonista, essa Rheya é apenas uma reprodução da mente do psiquiatra. Em determinado momento, ela afirma se lembrar de certas situações, mas não de suas emoções e pensamentos – em suma, ela não se reconhece.

O desespero de Chris, que se culpava pelo suicídio de Rheya, aumenta ao perceber que, no fundo, ele não a conhecia e que talvez não tenha sido tão atencioso quanto imaginara. A dura verdade é que ninguém conhece o seu par inteiramente; não importa a intensidade de seus sentimentos e a convicção acerca de sua intuição, sua mente sempre fabricará uma versão dos fatos e da personalidade alheia. Talvez Rheya não fosse uma suicida, talvez não fosse tão complexa assim. O planeta Solaris está na Terra, no convívio de todos os casais.

Gordon é pragmática e avisa ao protagonista que sua visitante deve ser destruída, afinal, ninguém sabe exatamente do que ela é feita e se apresenta algum perigo para a humanidade. Chris, em contrapartida, assim como Soderbergh, evita qualquer objetividade, tentando encontrar maneiras de validar a nova Rheya e, quem sabe, de ter uma segunda chance.

O protagonista entrega os pontos para o luto, está disposto a aceitar a impostora e, inclusive, a ficar em Solaris para o resto de sua vida. “Não sou ela. Não sou Rheya”. Os tons frios acentuam o dilema e a dor de Chris, cujo plano é rejeitado pelos colegas. A Terra não faz mais sentido, o tempo também não; ele se esforça para existir e observa os demais para se lembrar de reflexos comuns à natureza humana. O texto de Soderbergh, baseado no livro de mesmo nome, é complexo e empático a ponto de admitirmos “secretamente” que agiríamos como Chris. Poucos filmes exploram o luto, as memórias e o sentimento de culpa de uma forma tão sincera e poética.

O cuidado do cineasta na sua concepção de quadros, o uso da baixa profundidade de campo a fim de destacar o protagonista e o seu atual desinteresse por aquilo que o circunda e as panorâmicas suaves elevam “Solaris” ao patamar de obra prima.

A trilha sonora minimalista de Cliff Martinez, além de lindíssima, casa perfeitamente com a narrativa de Soderbergh. O desfecho fica em aberto, no entanto, seja qual for a sua interpretação, a sensação é de alívio.

George Clooney foge do seu charme habitual e constrói um personagem fragilíssimo. A não ser em situações específicas, Chris não se exalta, mantendo sempre uma melancólica sobriedade. Clooney trabalha brilhantemente os diferentes estágios do protagonista ao rever Rheya e foge do falso sentimentalismo.

Negligenciado por ser considerado – injustamente – um remake do clássico de Andrei Tarkovsky, “Solaris” é um dos grandes filmes da década de 2000.

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