Diferentemente da maioria das cinebiografias, “Bound For Glory”, que conta a história de Woody Guthrie, não é uma coleção de “melhores momentos”.
O Texas é um largo corredor vazio, rodeado de desesperança e mediocridade. Sem oportunidades de emprego, as pessoas se contentam com a miséria ou tentam “prosperar” em outras terras. Woody está sempre com o violão na mão, mas nem pensa em ser um músico. Ele pinta belos letreiros, porém não quer trabalhar com isso. Tudo bem, sua esposa o obriga, todavia, se o patrão reclamar das cores usadas, a demissão é garantida.
Nos bailes, movidos a música, as pessoas, entusiasmadas, dançam. Tudo no Texas, exceto a desesperança, é raro. A tempestade de poeira, além de visualmente extraordinária, serve como paradigma da vida daquelas pessoas. A festa acaba e o protagonista corre em direção ao nada.
Através de uma panorâmica, Hal Ashby explora o silêncio das ruas e o vazio cotidiano. A simples observação é suficiente para entendermos qual será o próximo passo de Woody.
Preocupado com a mulher e os filhos, ele vai sem alarde para a Califórnia, deixando apenas um bilhete. Entre caronas e saltos em trens, o protagonista passa por uma verdadeira odisseia, na qual conhece seres das mais diversas origens e caráter – todos miseráveis.
Ele briga bastante, é expulso de vagões por autoridades, ri e conquista o respeito dos colegas. Woody não fomenta laços duradouros, mas suas rápidas interações são intensas e belas. A trilha sonora, a partir de diferentes temas, e a fotografia, com sua considerável mudança de tons, indo da claridade à escuridão, ditam a dura jornada do protagonista.
Em meio a um estado de calamidade social, sua humanidade é moldada. O roteiro também aponta para outra característica de sua personalidade: o orgulho. Woody não aceita refeições gratuitas, não clama por piedade, não gosta de admitir sua situação – o estômago pode aguentar mais uns dias. Apesar da cumplicidade com a família, ele tem um quê de mulherengo, não por ser um sujeito sedutor, mas por, invariavelmente, dormir com alguém.
Ashby cria, pontualmente, uma forte sensação de claustrofobia, sendo a mais forte aquela contida na cena em que o protagonista finalmente chega ao seu destino, se segurando em dois vagões, encolhido para que não seja visto. O trabalho da direção de arte é magnífico, tanto pela reconstituição de época, quanto pela diferenciação entre os estados.
O Texas é aquele dos Westerns, com saloons e corredores de areia; enquanto a Califórnia é marcada por arquiteturas mais modernas, prédios e ruas asfaltadas. Um detalhe interessante, que ajuda na autenticidade do projeto, é a finura da roda dos carros.
“Melhor voltar para casa”. Woody rapidamente descobre que a lenda vendida é falsa: a quantidade de pessoas é desproporcional ao tamanho dos campos e os “afortunados” recebem apenas alguns centavos. A multidão se reúne numa espécie de acampamento, onde o protagonista se estabelece. A discussão acerca da fundação dos sindicatos, ainda embrionária, é potencializada por Ozark, um cantor local que vai ao acampamento semanalmente.
A música representa uma ponta de alegria, um momento no qual os seres humanos relaxam, sem pensar nas necessidades mais primitivas. Claro, as letras têm um teor libertário, levando Woody a refletir sobre seu futuro. Vemos, quase que na íntegra, o surgimento da música Folk americana. Talvez não o surgimento, mas o período em que ela, de fato, mostrou sua real face, despertando ódio nos patrões, naturalmente agressivos.
Em uma dessas celebrações, Ozark descobre Woody e decide levá-lo à rádio para fazer um teste. “Canto para ser feliz”, diz o protagonista. Suas canções são relatos sobre suas experiências – e é verdade, nós vimos tudo.
Ele sempre foi inteligente e consciente, só não tinha o palco. Woody não quer contratos com gravadoras, quer ser a voz do povo americano que clama por qualidade de vida, pela formação de sindicatos, emprego e cuidado. Rádios mais importantes vão atrás do protagonista, cuja nova fase é salientada através de seu figurino. Ele pode até usar um casaco de couro, todavia, o lugar em que se sente realmente confortável cantando é nas plantações e nas fábricas para seus semelhantes. Woody não tem interesse em ver as pessoas “sacudindo os esqueletos”, não compõe baladas românticas, a chave está na mensagem enfática que deseja passar.
Os produtores dos programas dos quais participa não querem polêmica, preparam um setlist “suave” e Woody luta contra o sistema. Na primeira vez em que o protagonista canta uma de suas músicas engajadas, Ashby corta para um plano de perfil, reforçando sua posição de guerreiro solitário. Seu rosto passa a demonstrar insatisfação, não a felicidade citada anteriormente. Ele não se sente confortável performando diante de ricos esnobes e para produtores que não ligam para o seu povo. Woody sofre diversos tipos de agressão, ainda assim, é no campo que sorri. Sua arte visa ao revigoramento de um povo que se considera inferior, que não acredita inteiramente na luta pelos próprios direitos.
Em uma belíssima cena, o protagonista vai a um campo com o seu violão em meio a uma chuva torrencial, cuja conotação, aliada aos tons acinzentados, é a mais pessimista possível. Os trabalhadores reservam suas atenções às palavras de um homem que canta sobre eles.
Uma sutileza que mantém Woody em contato com seus ideais, mesmo numa situação favorável, é a camisa verde – a natureza.
Numa de suas primeiras noites na Califórnia, o protagonista conhece Pauline, que serve sopa para os necessitados voluntariamente. A princípio, ele não aceita a sopa, afinal, é de graça, no entanto, se afeiçoa pela moça, com quem vive um romance.
Quando Woody finalmente vai à sua casa, se depara com uma inesperada riqueza, o que o leva a questionar os próprios sentimentos. Dinheiro define caráter e bondade? Não seria injusto e reducionista da parte do cantor rejeitar Pauline por valores materiais?
Não é fácil, mas ele vence seus preconceitos. Entretanto, ao notar que as coisas estão ficando sérias, avisa sobre sua família, cortando a relação de uma forma honesta.
A mulher e os filhos finalmente vão à Califórnia. A emoção de Mary com a nova casa é arrepiante – sonhava em ter acesso à eletricidade e um quarto para dividir com seu marido.
As rádios e os agentes reconhecem o talento de Woody, não querem perdê-lo, porém, sua rebeldia estremece os laços. Até Ozark o aconselha a maneirar a fim de garantir a estabilidade financeira. Seus posicionamentos são louváveis, assim como seu entendimento acerca de sua função enquanto artista; dito isso, sua família também precisa de apoio e suporte. Mary não sabe se o pai de seus filhos retornará para casa, pois está sempre desafiando as autoridades e se enfiando em confusões. Podemos chamá-lo de egoísta? É contraditório, mas, sim. Se Woody afirma que não precisa do emprego, é porque não precisa do dinheiro; e se essa conta realmente fecha, a família não é a sua prioridade máxima. Segundo o cantor, a pior coisa que poderia acontecer em sua vida é perder contato com sua humanidade.
O roteiro pinta o retrato mais real e relacionável possível, essas falhas tiram Woody de qualquer pedestal.
No desfecho, ficamos com a impressão de que aquele sujeito estava mesmo destinado a uma vida errante, “messiânica” e socialmente ativa.
Hal Ashby e Haskell Wexler, o diretor de fotografia, concebem quadros estupendos, sendo superados apenas por Stanley Kubrick, em “Barry Lyndon”.
O plano em que vemos o protagonista num vagão, com o violão na mão, de frente para o pôr do sol, que cria um efeito de contraluz, ficará eternizado em minha mente.
A partir de um plongée, o cineasta enquadra Woody e Ozark cantando para crianças e, no fundo, os trabalhadores – a união é simbólica.
Termino essa enumeração de imagens fazendo uma breve menção aos diversos planos gerais que captam as lindas paisagens rurais.
David Carradine encarna Woody Guthrie com propriedade, enfatizando todas as suas características sem muito esforço. Suas experiências solidificam seus princípios e as transformações comportamentais são gradualmente constituídas. Quando Woody extravasa, temos certeza de que está irritado – Carradine não havia gritado até então.
“Bound For Glory” é uma pérola esquecida, uma obra prima que dificilmente seria realizada nos dias atuais.