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Na base da marinha americana em Norfolk, Buddusky e Mulhall são encarregados de levar um prisioneiro até Portsmouth. Meadows é um jovem marinheiro, tem dezoito anos, e foi condenado a oito anos de prisão por ter roubado quarenta dólares de uma caixinha para a caridade. A punição se torna ainda mais absurda quando descobrimos que Meadows foi pego antes de cometer o delito.

Buddusky e Mulhall seguem ordens, não podem fazer nada, a não ser que queiram acompanhar o “novo colega”. Os superiores são tiranos, não inspiram nada além de medo e ódio. Em contrapartida, os marinheiros, na medida do possível, se apoiam e tentam aliviar o estressante cotidiano.

A fotografia congelante e a predileção da direção de arte por tons pastéis ressaltam a impotência e o desânimo dos personagens, “escravos assalariados” – e conferem uma inesperada beleza ao filme.

Acostumados com tarefas no quartel, a dupla se anima pelo simples fato de cruzar o país. Eles estabelecem um trajeto particular, medindo os gastos e as paradas estratégicas.

Meadows surge cabisbaixo e acuado. Empáticos, os marinheiros experientes decidem fazer um tour com o garoto, a fim de introduzi-lo a experiências e prazeres universais. No início, existe uma formalidade na disposição dos personagens no quadro – autoridades e prisioneiro -, subvertida por Hal Ashby na medida em que o trio se une.

Estamos falando de um jovem prestes a perder oito anos de sua vida por puro abuso de poder. Seu desespero é justo e palpável, exposto, por exemplo, numa destrambelhada tentativa de fuga na qual o cineasta usa a câmera na mão para emular seu pânico. Buddusky e Mulhall não estão ali para pressioná-lo, pelo contrário, querem passar valores reais e ensiná-lo a relaxar. Não existem patentes nessa jornada, aqueles são amigos que se respeitam e sentem a dor alheia.

“The Last Detail” é um “Road/Hangout Movie” e, a partir de uma narrativa movimentada e episódica, os personagens se libertam das amarras que aceitaram ao se alistarem. Meadows pode até estar numa situação pior, todavia, todos são prisioneiros da própria existência, de um ambiente regido pelo autoritarismo e pela desumanidade. Enquanto o garoto conhece o “paraíso”, Buddusky e Mulhall redescobrem prazeres esquecidos. O sistema quer excluir Meadows da sociedade e a dupla realiza o papel inverso.

“Todo mundo tem idade para uma cerveja”, afirma Buddusky, o protagonista. O barman não concorda, é racista com Mulhall e ameaça chamar a patrulha naval, o que é sucedido com uma das frases mais icônicas da obra: “Eu sou a porcaria da patrulha naval!”

Na primeira vez que dividem uma cerveja, estão escondidos na escuridão – seres desprotegidos, à margem da sociedade. O protagonista é o que melhor capta a raridade do momento, conduzindo seus parceiros a um “foda-se” calculado. O álcool é um importante relaxante e atrai interações genuínas. Os marinheiros internalizam um profundo ódio, logo, se estressam por coisas banais. Buddusky gosta de brigar, e ele tenta ensinar algo a Meadows, que não nutre pensamentos aversivos, nem pelos responsáveis por sua sentença. O contraste entre explosão e serenidade é engraçadíssimo e os cortes secos potencializam o humor. Por que assistimos um longo plano de homens bêbados, no meio de um quarto caótico, se esforçando para arrumar suas camas? Ashby está interessado no real, naquilo que os distancia das fardas. Qualquer situação honesta, por menor que seja, é importante e necessária.

Mulhall é naturalmente tenso; agradece a marinha por ser sua salvação, mas não esconde a repulsa que sente pelo ofício. Ele adora Meadows e aproveita o percurso, no entanto, também se pergunta se deve confiar no garoto e pede ao colega para acelerar o processo. O protagonista, por outro lado, foca no presente, nas horas, nos minutos e nas latas de cerveja. Prisão e liberdade são termos vagos e contraditórios nesse universo. As ruas são mais seguras que o protegido quartel.

A trilha sonora varia entre uma marcha, que abre e fecha a história, ressaltando a condição dos personagens, e um tema leve, capaz de transformar uma briga no banheiro entre marinheiros e fuzileiros em algo cômico. Para comemorar a vitória e o fato de Meadows ter lutado como um campeão, eles vão a um bar. “A melhor do mundo. O Presidente Kennedy costumava bebê-la”, diz Buddusky, ensinando ao rapaz o que é uma Heineken.

O brilhante roteiro não subestima seus personagens. “The Last Detail” não é somente divertido e incisivo em sua crítica às instituições americanas, é também um lindíssimo retrato sobre companheirismo e amizade. O que é mais puro do que patinar no gelo? Meadows parece uma criança aprendendo a andar. No bordel, o dinheiro inteiro está destinado ao garoto, que pode escolher qualquer moça e transar quantas vezes quiser.

“Como foi?”, pergunta ele, nervoso e interessado na resposta da prostituta. “Foi real para mim. É o que conta”.

Em uma conversa casual, percebemos quão vazios de vivência e experiência Buddusky e Mulhall são. Seus relacionamentos fracassaram e não há nada de excitante ou memorável em seus passados.

A fé, seja lá qual seja, serve de consolo e esperança diante de cenários aterradores. Meadows nem entende as palavras que entoa e, ainda assim, sente que sua única chance está naquela repetição.

O grande dia chega e, em meio à neve, Buddusky e Mulhall realizam o último desejo do jovem: um piquenique. Não precisava ser desse jeito. Havia alguma outra forma? São homens exercendo suas obrigações…

A farda é a primeira pele – e arde bastante.

Os cinco dias foram especiais, todavia, como mencionei, a marcha toca novamente, e eles precisam acordar e retornar ao pesadelo.

“Te vejo em Norfolk”.  

Jack Nicholson oferece uma das melhores performances da década de setenta. Buddusky é a mente e o coração do filme. O ator equilibra magistralmente a empatia do marinheiro, seu senso de liderança e uma certa irresponsabilidade. Ele vive seu personagem – mais um anti-herói americano em sua excepcional carreira – com a naturalidade exigida por Ashby, conhecido por dar liberdade aos seus intérpretes.

Randy Quaid mantém o nível lá em cima, fazendo de Meadows um jovem adorável e relacionável, apesar das cruéis circunstâncias.

“The Last Detail” é uma obra prima, o puro suco da “Nova Hollywood”.

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