As pessoas nascem moldadas a uma personalidade ou mudam ao longo do tempo?
O roteiro de “We Need To Talk About Kevin” não é enfático, mas também não esconde seu pessimismo.
O personagem que está no título é um bebê e seu choro, realçado pelo excelente design de som, é mais irritante que o som de uma britadeira. Ele cresce e sua expressão é assustadora. Kevin diz coisas terríveis para a mãe, a magoa e muda de comportamento quando o pai aparece. Crianças podem estar tão à frente de adultos a ponto de manipularem suas emoções?
Como espectadores, temos a capacidade de julgar os personagens e criamos um forte laço com Eva, a grande vítima da história.
Ela tenta ser uma mãe presente e carinhosa, mas tudo que recebe em troca são respostas ríspidas e indelicadas, arquitetadas por um garoto que sabe exatamente como ferir alguém.
Ao invés de amadurecer e suavizar com o tempo, Kevin se torna cada vez mais diabólico e frio. Seus planos partem de uma mente doentia e a diretora dá pistas suficientes para entendermos determinadas situações sem ter que mostrá-las.
Em um jantar, Eva tenta puxar uma conversa e o jovem responde com um tom de superioridade, como se soubesse exatamente tudo que ela iria dizer. Kevin a odeia? Não tenho dúvidas sobre isso. No entanto, o roteiro deixa claro que existe um certo “complexo de Édipo” nessa relação, não à toa, Eva é a única poupada na carnificina – a mãe só para o filho – e é somente para ela que ele realmente “se abre”.
Sim, precisamos falar sobre Kevin, porém o filme é sobre Eva, o antes e o depois. Ela era feliz com seu marido e a pequena profundidade de campo ressalta o quanto já se passou depois daquele período. Kevin não apenas sugou sua energia, mas a fez duvidar de suas convicções e de sua própria “criação”. Franklin vê apenas a encenação e se distancia da esposa, enquanto Celia, a caçula, é tratada com um cuidado excessivo por parte de Eva, que não sabe o que esperar de Kevin.
Sua vida se tornou um enorme e tortuoso vazio, cuja graça estava em pequenos momentos, por exemplo, quando Kevin fica doente e trata a mãe com carinho, levando-a a um estado de rara felicidade. A cada tentativa de compreender o filho, Eva se deparava com algo desesperador: Kevin era um psicopata e nada seria capaz de mudar o seu “jeito”. O fim da família culmina na prisão de ambos – o filho atrás das grades e a protagonista presa ao passado, julgamentos alheios e a dificuldade em encarar o fato de que o homem que matou sua filha e seu marido era o seu único laço restante.
No presente, Eva é uma mulher abatida e apavorada, que evita encontrar algumas pessoas, que não se sente confortável em espaços cheios, cuja voz retraída é um sintoma de sua solidão.
Ela sofre agressões físicas e verbais. Há duas cenas devastadoras que conversam com o seu arco. Em ambas, Eva está mais alegre e confiante, porém é rapidamente “posta em seu lugar” da forma mais brutal possível.
Vários pais perderam seus filhos e Kevin não estava nas ruas para receber a devida vingança, logo, o alvo mais óbvio é a sua mãe. Poucas personagens são tão trágicas quanto Eva, que perdeu tudo o que tinha e que vê em qualquer lugar – até mesmo sua casa – uma prisão.
A direção de arte e a fotografia aposta no contraste entre duas cores: vermelho e amarelo. Elas desempenham funções distintas na narrativa, podem se inverter dependendo da situação e surgem discreta ou enfaticamente. A conotação geral do vermelho é bem óbvia, entretanto, quando Eva usa um vestido da mesma cor, enxergamos como uma forma de seguir em frente, afinal, suas roupas variam entre o bege e o preto. Em contrapartida, o amarelo representa a felicidade e a harmonia familiar – a cena em que Franklin dança com Celia diz tudo -, no entanto, qual é a cor do cadeado usado por Kevin para prender os colegas na escola…
As cores podem até aparecer juntas, como no carro de Eva – amarelo -, sujo de tinta vermelha. O ato de limpar a casa e o veículo são simbólicos. Eva quer se livrar de qualquer amarra do passado, dos pesadelos que a atormentam diariamente.
A fotografia alterna entre uma forte luz e tons acinzentados, mas também não segue uma regra à risca, podendo quebrar certos padrões. Se a antiga casa era imensa e dominada por cores vivas, a nova é pequena e as paredes não fogem de uma tonalidade pastel, enfatizando a melancolia de Eva. A intensidade dessa luz obviamente alterna entre fases e momentos específicos, mostrando-se um elemento narrativo fundamental.
A montagem é espetacular, não só por indicar, gradativamente, o que aconteceu, mas por realizar rimas visuais espetaculares entre passado e presente. A protagonista está grávida, rodeada de crianças a caminho da aula de balé, corta, e, num corredor parecido, ela vai em direção a cela de Kevin – início e fim da vida. Ao olhar uma mãe passeando e rindo com a filha, Eva paralisa e vemos uma cena bastante similar dela com Celia.
Os cortes abruptos são angustiantes e aumentam a tensão.
Lynne Ramsay aposta em uma abordagem empática, explorando a psique de Eva através do uso de câmera na mão e de câmera lenta, potencializando o olhar condenatório das pessoas. Sua mise en scéne é cuidadosa. A posição dos corpos de Kevin e da protagonista sugerem uma distância que se contradiz com a real situação e, principalmente, com o desfecho. A sequência em que o rosto dos dois é praticamente “misturado” é bastante simbólica ao abordar o relacionamento conturbado e complexo deles.
Seus planos fechadíssimos e planos-detalhe são inteligentes, sempre dizendo algo importante para o espectador.
Tilda Swinton oferece uma performance avassaladora, transitando entre períodos de forma genuína. Sua desesperança em relação ao seu futuro é gradativa e o efeito das atitudes de Kevin está no seu rosto cabisbaixo, no seu andar rápido e na sua fala claudicante. Suas reações a certas barbaridades expõem perfeitamente o interior da protagonista. Existem diferentes Evas e diferentes momentos e Swinton é talentosa o bastante para dominar o filme.
Ezra Miller está espetacular. Suas rápidas mudanças na entonação e seu olhar penetrante são marcas poderosas.
Vale ressaltar também a feroz crítica ao conteúdo televisivo e o interesse das pessoas por violência. Os agradecimentos de Kevin e o som de aplausos são pura ironia.
Considerando que a protagonista termina o filme arrumando o quarto de Kevin com delicadeza e o abraça calorosamente na prisão, podemos dizer que Eva estará eternamente “presa” e que certos sentimentos são praticamente impossíveis de se compreender. Ela era a sua mãe e ele, seu filho.
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