“E eu me perguntei se uma memória é algo que você tem ou algo que você perdeu”. Esse fragmento é de “Another Woman”, de Woody Allen, mas se encaixa perfeitamente no contexto da obra de Manoel de Oliveira. Antes de emocionar por seu tema, “Viagem ao Princípio do Mundo” comove pelo simples fato de ter sido o último projeto de Marcello Mastroianni.
Por que o icônico ator italiano, aos 71 anos, decidiu trabalhar com o renomado cineasta português? Por amor à arte – essa é a única resposta lúcida que encontro. Mastroianni morreu poucos meses após as filmagens, o que reforça o fato do cinema não ser apenas seu ganha pão, mas, também, uma paixão insubstituível.
Seu personagem, Manoel, é um cineasta que, com o elenco de seu novo filme, viaja por um lugarejo em Portugal. Manoel fala sobre sua atual fase com o pesar da idade. À sua visão, os idosos são seres esquecidos pelos jovens; seres tolerados, não respeitados. O princípio do mundo é o passado. Oliveira abraça a estrutura de “Road Movie”, propondo uma viagem pelas memórias de seus personagens, o que, de certa forma, não deixa de ser uma reflexão sobre a própria arte; afinal, os bons cineastas são aqueles que se debruçam sobre suas memórias e experiências. O passado e o presente coexistem a todo instante. Um hotel deixa de ser somente um hotel quando se tem a lembrança de algo dito por seu pai – é como se aquele lugar fosse familiar, mesmo sendo desconhecido. O colégio interno está distante para os demais, que precisam de binóculos para enxergá-lo, mas não para Manoel, que relata detalhes daquela época com a vivacidade de um homem apaixonado pela vida.
Uma simples estátua ganha contornos especiais quando um dos atores percebe que o bigode do sujeito carregando o tronco é idêntico ao de seu personagem no filme. O cinema é a arte da memória, dos pequenos momentos que, pelas circunstâncias do passado, tornaram-se eternos. O cinema registra e armazena as preciosidades da trajetória humana. Manoel conta sobre sua relação com os irmãos mais velhos, as cortesãs que conheceu e o período em que aprendeu a dirigir. Por outro lado, ao revisitar o passado, fica nítido que não é possível banhar-se duas vezes no mesmo rio. Mastroianni dita o tom do filme, combinando a melancolia dos anos, o amor pelas memórias e um carisma que lhe é peculiar – as caretas que ele faz são impagáveis. Todas as paisagens escondem algo que se foi. Uma árvore representou, para alguém, o marco inicial de um romance. Assim como no cinema, os espaços e os objetos ganham significado e simbolismo.
Oliveira filma a estrada que ficou para trás, não a que está adiante – a não ser no final -, estabelecendo uma rima temática fascinante. Ao mudar o foco para Afonso, interpretado por Jean-Yves Gautier, Oliveira assume um risco considerável – e, confesso, o filme perde um pouco de seu impacto. Afonso, um famoso ator francês, quer visitar a tia que nunca conheceu. É uma viagem particular ao princípio do mundo; uma viagem a um lugar sem máquinas ou grande infraestrutura, mas recheado de histórias e afeto. O idioma é uma barreira para quem não está disposto a enxergar o outro. No fim, fica a vontade de acompanhar as filmagens de Manoel.
“Viagem ao Princípio do Mundo” foi a despedida ideal de um verdadeiro mestre da arte de performar.