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O amor pertence ao mundo das ideias; existe nas mentes e nos corações daqueles que idealizam e sofrem, não dos que vivem uma vida a dois estável. Bater o olho em alguém e se espantar com a própria reação é um forte sintoma; se aproximar dessa pessoa, se tornar um confidente e imaginar cenários é, ao mesmo tempo, mágico e inquietante; perdê-la de vista e ser obrigado a se conformar com memórias que nunca se apagarão é insuportável.

Em “Two English Girls”, outra adaptação de um livro de Henri-Pierre Roché – que também é o autor de “Jules et Jim” -, François Truffaut reafirma o seu interesse por esse tema tão complexo e fascinante, realizando um épico introspectivo. Claude é apresentado a Anne, uma jovem inglesa, filha de uma grande amiga de sua mãe. Eles caminham por Paris, falam sobre arte e ela o convida para passar as férias no País de Gales com sua família. Chegando lá, Anne exalta sua irmã, Muriel, que sofre de um problema no olho e raramente sai de seu quarto. Truffaut a transforma num mito, uma figura de fácil idealização antes mesmo de surgir em tela.

No primeiro jantar com todos postos à mesa, Muriel usa uma venda que aumenta sua aura misteriosa e confere fragilidade à sua imagem. Anne parece querer uni-los e, aos poucos, os três se tornam inseparáveis. Claude se sente adotado e fica encantado com a gentileza das garotas, que transpiram doçura e não falam mal de ninguém. Em meio àquelas paisagens bucólicas e aos tons quentes, o protagonista veste um pulôver vermelho e as irmãs, roupas brancas – amor e pureza reunidos.

Em um jogo familiar, Claude é “obrigado” a dar um beijo na bochecha de Anne. O fogo da lareira refletido nos óculos de Muriel, que vira o rosto, talvez reflita um ciúme. Digo talvez, pois ela é uma personagem quase indecifrável, que adaptou a ilha em que vive ao seu estado de espírito. Truffaut investe em situações muito sutis para intensificar a relação entre os três, como, por exemplo, diálogos nos quais discutem diferenças culturais. Anne e Muriel, no ápice da pureza e da inocência feminina, demonstram interesse por bordéis, proibidos na Inglaterra.

Claude não precisa de muito para estar feliz, o simples fato de observá-las já é suficiente para que abra um sorriso. Os toques físicos são delicados, existem barreiras que não podem ser ultrapassadas e os personagens são elegantes, inclusive, na forma como se comunicam. Repentinamente, uma força toma conta de seu peito. É o amor e Muriel era o alvo desse sentimento intenso e cortante. Anne não teria forçado a barra para que isso acontecesse? A verdade é que somente um jovem apaixonado seria capaz de escrever coisas tão belas.

O instante da paixão tem o efeito de uma flecha no coração; não há como fingir que está tudo bem, a mistura de emoções resulta numa agitação física e, inevitavelmente, na ansiedade por respostas. O silêncio machuca e, até que as partes cheguem a um acordo, elas se mantêm em seus cantos.

Após muito receio, Muriel aceita a proposta do francês, no entanto, a pedido da mãe dele, que não vê essa união com bons olhos, os jovens se afastam por um ano. A justificativa para tamanha injustiça seria o assentamento de seus sentimentos. Eles não se envolveram fisicamente, não teriam a oportundiade de assumir um compromisso e deixariam de se ver por um longo período, logo, o que resta é o amor no seu formato mais melancólico e invasivo.

Em Paris, Claude inicia sua carreira de crítico de arte e é manipulado pela mãe, que dita seus passos e modos. Ele aprende a preservar sua dor, assumindo uma existência de distrações e amantes. A direção de arte passa a associar o vermelho ao protagonista, que, sem o encanto da ilha galesa, se entrega aos pouco significativos prazeres da carne. Muriel, em contrapartida, não consegue pensar em nada além de Claude, acarretando uma série de complicações físicas e psicológicas. A parede azul ressalta a melancolia e a cama vermelha, a paixão. Sua reclusão, que era sinônimo de conforto, agora representava a maior das solidões. Truffaut não mede esforços para afirmar que o amor é, na verdade, uma maldição. A opção da montagem por fades é perfeita ao destacar a distância entre os dois. Aquilo que aconteceu na ilha não se estenderia ao casamento. Na medida em que admitimos nosso encantamento perante a simplicidade poética daqueles momentos, enxergamos uma raridade, de fato, hipnotizante.

Anne dá uma chance à carreira de escultora e vai à Paris, onde encontra Claude e revive a alegria dos velhos tempos. Desde a primeira cena do filme, ele a desejou e ela, decidida a se transformar numa mulher, o acompanha a uma ilhota na Suíça. Antes de qualquer envolvimento, Anne divide a cabana com um lençol, remetendo, instantaneamente, às muralhas de Jericó, do clássico “It Happened One Night”, dirigido por Frank Capra. Diferentemente de Muriel, ela é independente e leve. Claude, que conhecia o amor da alma, estava diante do amor do corpo; o sexo passa a representar a união de seres que desejam estar juntos a todo instante.

No seu processo de “desvirginamento”, Anne se coloca à disposição para experimentar tais sensações com outros rapazes. Claude admite a dor, sente o choque, porém não luta, não se desfaz dessa persona passiva e “compreensiva”. Mais uma vez, o protagonista provou o desconhecido gosto do amor e se via à deriva, reunindo tudo para um livro, que, nesse sentido, é a confirmação de algo que nunca se concretizou.

Muriel se esconde atrás dos óculos, parece ser muito mais velha do que realmente é e ainda não consegue pensar em nada além de Claude. Essa é a história de seres que desconhecem a segurança do lar, que entraram em contato apenas com a droga mais viciante e destrutiva já inventada. Eles cultivam a ideia do amor, desconhecem o caminho natural e não se contentam com nada menor do que aquilo que aconteceu em Gales.

A tragédia não está no desfecho, ela é definida nos minutos iniciais, quando os personagens se conhecem e se deparam com algo que vai atormentá-los até o fim de suas existências. A tão esperada cena romântica entre Claude e Muriel serve mais de alívio do que qualquer outra coisa. “Nossa história é um fracasso”, diz ela, que, antes de tentar seguir adiante, queria guardar uma memória minimamente bonita.

Anos se passam e Claude, envelhecido, não era diferente das estátuas do jardim do Museu Rodin. Imóvel e cansado, ele só tinha o seu passado.

Kika Markham e Stacey Tendeter são jovens igualmente meigas e estonteantes. A adoração é mútua, todavia, há também uma silenciosa competição ali. Ainda assim, a empatia que nutrem nunca deixa de ser a prioridade. As atrizes trabalham bem seus arcos e dão vida a personagens com personalidades distintas. A vulnerabilidade exposta por Tendeter chega a impressionar.

Jean-Pierre Léaud é naturalmente carismático e os fantasmas que assolam sua alma estão em seu rosto, que, gradativamente, perde o brilho.

“Two English Girls” é a principal joia da filmografia de François Truffaut.

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