“Traffic” poderia ser “mais um” filme sobre a luta contra o tráfico de drogas. Felizmente não é. Steven Soderbergh monta uma verdadeira teia de aranha e expõe através de uma trama complexa, como sabemos tão pouco sobre o assunto.
O principal ponto em sua direção é a facilidade em lidar com muitos personagens. Todos são bem trabalhados e enriquecem o resultado. Soderbergh dirige muito bem seus atores, o elenco é vasto e nenhum ator passa despercebido.
A montagem dá fluidez a trama e impede que o filme fique enfadonho ou confuso.
A fotografia é o grande destaque. O cuidado de Soderbergh é notável e o fato dele ter sido esnobado no Oscar me deixa incrédulo.
Temos três núcleos bem definidos e cada um possui um filtro bem específico.
Tijuana é tomada pelo amarelo, que ressalta a aridez e a miséria.
O juiz, Robert Wakefield, está sempre em contato com o azul, que conversa diretamente com a sua frieza e impotência perante seus esforços.
Em contrapartida, Soderbergh optou por cores cotidianas para retratar o mundo de Helena Ayala.
Além de fundamental para a construção dos núcleos, a fotografia ajuda a entender onde estamos.
Javier Rodriguez é um policial honesto, que anseia pelo fim do tráfico de drogas no México. Ele sonha em ver crianças jogando beisebol nos parques, mas sabe que se trata de uma realidade distante. Tijuana é um lugar movido por seres desprezíveis e uma miséria palpável. As pessoas têm medo de andar nas ruas.
Javier surge como um sujeito qualquer, porém, aos poucos notamos sua diferença.
Ele se junta ao líder do departamento policial para acabar com o cartel de Tijuana e claramente fica desconfortável com os métodos desumanos dos colegas. Quando Javier descobre que seu chefe era o líder do outro cartel mexicano e que aquela operação era apenas uma luta por território, sentimos a descrença e a tristeza no seu rosto. São lágrimas honestas, de um homem que sonhava com um simples conforto. Javier não sente prazer em delatar as pessoas, mas sua honestidade tem limites. Benicio Del Toro está perfeito. A princípio, sua presença parece suspeita e denota uma certa sujeira. Porém, com sutilezas dignas de premiações, o ator desconstrói o personagem e apresenta uma humanidade tocante.
O segundo núcleo é composto pelo já citado, Robert Wakefield, sua esposa e sua filha.
Ele é considerado o czar das drogas, o homem que irá acabar com o tráfico. Seus discursos fazem sucesso, as pessoas têm esperança e o cercam quando podem. Robert conhece o presidente, participa de reuniões importantes, vai ao México e não consegue entender o seu principal problema. Em casa, sua filha, Caroline, fica viciada em heroína e crack. Eu gosto como Soderbergh retrata os jovens, que utilizam encontros como desculpas para se drogarem.
Os vários cortes enfatizam o vazio dos diálogos e a deterioração absoluta. Robert quer salvar o mundo e esquece as duas pessoas mais importantes de sua vida. As drogas estavam em sua casa, ele não precisava ir até o México. Sua obsessão com os cartéis também ameaça a estabilidade do casamento. Barbara não recebe a devida atenção e isso fica nítido em uma determinada cena. O roteiro é sensacional ao mostrar, gradativamente, para Robert, que o tráfico de drogas era algo muito mais complexo do que parecia e que suas atenções deveriam estar voltadas a algo mais palpável, no caso, a própria filha. A cena em que a ficha cai é maravilhosa, sua feição denota cansaço e arrependimento profundos. A rigidez do início era apenas um gatilho para um vício maior ainda e como pai, ele deveria ter notado isso mais cedo.
Michael Douglas é outro que merece todos os elogios. Seu personagem é extremamente profissional, tem objetivos claros e espera pô-los em prática. Quanto mais ele adentra aquele território, percebe que estava indo na direção errada. Se deparar com a realidade é fundamental para a humanização do personagem e seu desfecho é belíssimo.
O último núcleo segue a socialite, Helena Ayala, que sofre um forte baque. Seu marido, Carlos, é um dos líderes do cartel de Tijuana e acaba sendo preso. Acostumada a uma vida luxuosa e movida por aparências, Helena se desespera. Seu arco é significativo. A personagem parece solitária e submissa, mas aos poucos toma a posição do marido, adentra o mundo do tráfico e passa a aceitar o inaceitável, só para manter a antiga aparência. O roteiro enfatiza a desumanização desse meio, que vê pessoas como oportunidades e há um exemplo específico nesse núcleo, que sintetiza isso inteiramente. Catherine Zeta-Jones desempenha, provavelmente a sua melhor interpretação. Sentimos pena e ódio de sua personagem com a mesma intensidade.
Don Cheadle e Luís Guzman formam uma dupla de policiais que investiga o marido de Helena. Eles têm uma excelente química e funcionam muito bem como alívio cômico.
Ainda temos um ótimo Topher Grace, como o namorado drogado de Caroline e Jacob Vargas, como o amigo de Javier, que se entrega para a ganância e sofre as consequências que o meio exige.
“Traffic” é um retrato magnífico sobre o mundo das drogas e dos diferentes modos que ele pode afetar os seres humanos.
Um filme tecnicamente impecável, repleto de grandes atuações e elevado pelo talento de Steven Soderbergh.
O que você achou deste conteúdo?
Média da classificação / 5. Número de votos:
Nenhum voto até agora. Seja o primeiro a avaliar!