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Baseado em “We Can Remember it for You Wholesale”, conto de Philip K. Dick, “Total Recall” é um deleite audiovisual que combina questões existenciais e éticas, olhar crítico à fundação do mundo moderno e assinatura autoral de um cineasta que não teme retaliações. 

Em 2084, Douglas Quaid tem sonhos constantes com Marte, planeta que está à beira de uma revolução. Lori, sua esposa, tenta convencê-lo a ficar na Terra, seguindo com a vida segura e pacata. Eis que, a caminho do trabalho, Quaid se depara com um anúncio da Rekall, uma empresa que planta memórias realistas. Um cliente antigo acabou sofrendo uma lobotomia, o que não impede o protagonista de saciar sua ânsia por experiências marcantes. No processo, vem a primeira reviravolta: Quaid já teve sua memória modificada e não é quem pensa que é. Na verdade, ele realmente esteve em Marte e foi “apagado” por ter tido acesso a informações que minariam o poder do governo. Sua vida é uma mentira, inclusive o casamento com Lori, que, subordinada a figuras poderosas, passa a tentar matá-lo. 

Marte foi colonizado por humanos e é controlado por uma corporação privada. Vilos Cohaagen, o governador, priva os nativos de turbinium, principal recurso econômico local. O futuro de Verhoeven é uma viagem ao passado, à fundação da civilização e de potências mundiais. Em “2001”, Kubrick nos apresentou à ambição do homem, insaciável em sua busca por dominar o inimaginável. Verhoeven usa seu sarcasmo e senso estético para dizer que estamos andando em círculos. Pior, estamos regredindo: quando Quaid precisa fugir e pede para o taxista ir para qualquer lugar, nada acontece, afinal, o motorista é um robô programado para responder a comandos específicos. A direção de arte, com suas construções metálicas e de concreto, revela a opressão a qual os seres são submetidos. O meio urbano é dominado por fumaça e tons de cinza, denotando impessoalidade e indiferença. 

O colonialismo é pintado em linhas de sangue, o que confere um caráter simbólico à escolha por Marte, que, com seu céu avermelhado, cobre o rosto dos líderes e daqueles que se atrevem a lutar por liberdade. A tecnologia futurística parece ter sido investida inteiramente em propagandas. Rekall não vende um produto, mas uma chance de conferir significado à própria vida. As interpretações vão ao encontro da estilização de Verhoeven; o funcionário que atende o protagonista é o canastrão ideal, um calhorda capaz de qualquer coisa para convencer o cliente. Quaid personifica o americano médio que acredita no grande sonho. Operário, ele compra a idealização, acreditando ter sido destinado a “coisas maiores”. A grande ironia é que, na busca pelo imaginário, Quaid encontra a verdade. A questão vai além da propaganda, adentrando o terreno da ética e da moralidade. O cérebro é a “peça” que nos individualiza; adulterá-la, em termos filosóficos, representa a morte da raça humana. Tal procedimento, remete a outra obra de Kubrick: “Laranja Mecânica”, na qual o criminoso, para retornar à sociedade, precisa passar por um experimento em que seus instintos cerebrais básicos são bloqueados. Há, também, a questão da experiência facilitadora, que, no fundo, é um artifício que impede a vivência geral. As pessoas não precisam deixar suas casas, satisfazendo-se com chips e testes que seriam apropriados somente em robôs. 

O roteiro brinda o espectador com algumas reviravoltas, mas o show é mesmo de Verhoeven, cuja imaginação, em tempos atuais, seria domada. O cineasta holandês gosta do politicamente incorreto e de dar um ar sujo/sexy aos seus filmes. Aqui, há um desfile de sequências e palavrões que compõem esse universo corrompido e violento com maestria. A ação é conduzida com vigor, combinando toques cartunescos e brutalidade. Para desmascarar determinado personagem, Verhoeven precisa apenas de um close up que registre uma gota de suor. Seu auge estético talvez seja uma fusão em que vamos da tela ensanguentada para o céu de Marte, estabelecendo uma elegante rima visual e temática. Os efeitos práticos seguem formidáveis, ressaltando a inventividade da equipe envolvida – destaque para o líder da resistência -; por outro lado, os efeitos visuais ficaram datados, o que não deixa de dar um charme peculiar ao filme. 

Arnold Schwarzenegger recebe um prato cheio de frases de impacto e as dispara com o carisma que o transformou num ícone hollywoodiano. O papel é feito sob medida para o austríaco, que, embora limitado, oferece uma performance sólida. “Total Recall” é uma das grandes ficções científicas da década de 90.

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