“The Verdict” conta a história de um homem decadente. Um advogado que passa os dias bebendo e fumando, sozinho, sem trabalho ou companhia. E que frequenta funerais aleatórios por ser uma das raras possibilidades de encontrar um cliente.
Frank Galvin é um sujeito autodestrutivo, sem qualquer perspectiva, no entanto, diferentemente de seus colegas, ele não é ardiloso, nem ganancioso. Em um ambiente dominado por homens poderosos e insaciáveis, sua honestidade e senso de justiça o levaram ao buraco. Frank era sócio de um escritório renomado, casado com a filha de seu chefe, todavia, quando se opôs a uma determinada ordem, foi posto na cadeia e perdeu sua licença. Sucumbiu às ameaças e saiu do presídio, mas foi abandonado pela esposa e demitido. O protagonista se entregou à bebida e, desde então, vive num marasmo que não parece ter fim.
O conhecemos a fundo somente na metade do filme, não temos motivos para considerá-lo diferente dos demais. Ainda assim, há algo em seu olhar e na necessidade que sente por superar as dificuldades que chamam a atenção do espectador, que não demora a criar um laço empático com Frank. Mickey Morrissey, um antigo amigo, lhe oferece uma grande oportunidade. O protagonista sabe que precisa disso, mas está enferrujado, não ganha um caso há quatro anos e vive em um universo escuro e desesperançoso.
Em um hospital comandado por uma figura católica, uma jovem prestes a dar à luz entrou em coma após ser sufocada pelo próprio vômito. Sua irmã e médicos competentes afirmam que esse é um claro caso de negligência, no qual o Doutor responsável errou a dosagem anestésica. Os donos do hospital estão dispostos a fazer um acordo de duzentos e dez mil dólares, entretanto, Frank, decidido a levar o caso para os tribunais, rejeita a oferta. Considerando a situação financeira alarmante da contratante, sua decisão suscita uma questão importante: ele realmente acredita que vencerá o julgamento e que a verdade precisa ser exposta, ou apenas precisa provar para si que ainda é capaz? É sobre justiça ou ego? Não existe uma resposta certa. Frank, a princípio, fica dividido, todavia, quanto mais se lembra do sujo e corrupto meio jurídico, se volta para o lado da vítima, disposto a expor toda a verdade.
De qualquer forma, não podemos ignorar que essa é a história de um homem que aposta suas últimas fichas em algo que o sistema descaradamente rejeita. Se Frank fracassar, sua carreira e vida terminam. Não estamos falando somente sobre uma luta por justiça, também sobre a retomada de uma existência que não fazia qualquer sentido.
Esse não é um simples filme de tribunal, mas um profundo estudo de personagem, o que fica evidente quando surge Laura, a primeira mulher com quem Frank se relaciona após o fim de seu casamento. O seu arco, apesar de ser repleto de conquistas, é sobre se reestabelecer como ser humano e advogado, entendendo nitidamente quem é quem e de que lado ele quer estar. Ir a julgamento e vencer o caso é maravilhoso, no entanto, o que realmente importa é entrar no tribunal e deixar uma mensagem solidária, humana e empática. Por mais que o juiz peça para o júri ignorar certas falas e testemunhos, isso é humanamente impossível. Não interessa quantas brechas na lei Concannon encontre, a imagem que fica na mente das pessoas é a do homem tentando fazer a coisa certa, não a do que se aproveita de um sistema falido. Não recomendaria esse filme a alguém que deseja estudar direito. Frank tinha uma excelente testemunha, mas ela desaparece, as enfermeiras do tal hospital se recusam a ajudá-lo – provavelmente foram ameaçadas – e a mulher que havia entrado em sua vida, era apenas uma espiã. O escritório de Concannon é enorme, repleto de figuras exibidas e confiantes que usam como estratégia principal a drenagem emocional do adversário.
A direção de arte, nesse sentido, é primordial. Frank trabalha praticamente sozinho, em espaços decadentes, tomados por cores frias. Em contrapartida, Concannon tem uma sala luxuosa, uma mesa com inúmeros aliados. Ele e o Padre estão ligados ao vernelho – poder, sangue. Na cena em que é desmascarada, Laura está próxima a uma parede verde, que salienta a sua natureza misteriosa e ambígua.
A montagem é igualmente fundamental para a fomentação dessa desigualdade e do jogo de poder. Os cortes são muito enfáticos. Quando notamos que algo deu errado, somos diretamente transferidos para um ambiente onde a situação tenta ser contornada ou é simplesmente aceita. O timing entre percepção e raciocínio/resolução é perfeito, sem falar no dinamismo que dá à narrativa.
A fotografia aposta acertadamente em tons frios e escuros, adentrando o universo de Frank desde o primeiro instante.
Sidney Lumet era um mestre. Sua abordagem é extremamente elegante e precisa. Não precisamos de diálogos para entendermos onde o protagonista se encontra. O diretor foca num cotidiano repetitivo e pacato, dessa forma, enfatiza o quão perdido, solitário e destruído ele está. Seus close ups são bastante expressivos, usados apenas em situações oportunas e tensas. Quando descobrimos que Laura é uma agente dupla, percebemos que sua posição no quadro e alguns de seus trejeitos já a denunciavam e indicavam seu receio por magoar alguém que realmente gostava. Lumet trabalha muito bem os pontos de foco, dando uma importância enorme para os personagens posicionados no fundo. O melhor exemplo desse cuidado é na cena em que Morrissey treina a nova testemunha para o julgamento e, lá atrás, vemos Frank, cabisbaixo e desesperançoso.
James Mason faz de Concannon um sujeito frio, calculista e inteligente, que conhece cada brecha da lei e sabe jogar sujo, sempre mantendo a elegância britânica que lhe é peculiar – a não ser na sequência final, na qual demonstra fragilidades a partir da entonação vocal claudicante e de um suor excessivo. Ainda assim, o momento que define seu caráter, é justamente aquele em que ele se impõe à testemunha, “agredindo-a”. Só sentimos sua imponência graças a contraposição de ângulos – plongée e contra-plongée. As cenas no julgamento são surpreendentemente engajantes e intrigantes, não apenas pela qualidade do texto, mas pela classe de Lumet, que sabe exatamente quando deve movimentar sua câmera e quando deve optar pela abordagem menos “intrusiva” possível. Não poderia deixar de elogiar o seu corajoso desfecho, que provavelmente pegará a maioria desprevenida e que encapsula com maestria tudo o que assistimos.
Paul Newman não interpreta o galã inabalável. Pelo contrário, seu personagem é um poço de vulnerabilidade e desesperança. Sua felicidade surge em pequenas conquistas – gestos genuínos. Sua trajetória passa pelo ânimo de estar volta ao jogo e a decepção por perceber o quão sujo e injusto é o meio em que trabalha. A drenagem emocional está em seu rosto, é bem delicada, contudo, Newman também impressiona com movimentos efusivos – quando tem uma crise de ansiedade, por exemplo. A vitória que era pelo ego, rapidamente se transforma numa busca desenfreada pela verdade e por um pouco de humanidade e, no fim, além de alívio, tudo o que sentimos em Frank é um cansaço extremo. Há um diálogo especialmente marcante que poderia soar brega, caso Newman não o dissesse com tanta honestidade. O advogado precisa ser, simultaneamente, cerebral, simpático e feroz. O que diferencia os de boa índole dos gananciosos é a integridade.
“The Verdict” é um maravilhoso estudo de personagem e de um sistema que perdeu os próprios valores, priorizando os poderosos e as brechas que pouco importam, comparadas a relatos fortes e a humanidade que falta aos juízes e advogados de modo geral.
Lumet, Mamet e Newman não se reúnem para realizar qualquer coisa. “The Verdict” é uma obra prima.
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