“The Searchers” inicia com um plano de uma porta se abrindo. Ethan Edwards, uma presença inusitada por sua natureza errante, visita sua família e é recebido com enorme comoção. Seus sobrinhos o adoram e os olhares que troca com Martha, esposa de seu irmão, denotam uma paixão velada. Ethan é carinhoso e cuidadoso, dá presentes e sorri ao perceber que alegra os seus entes queridos.
Na manhã seguinte, Samuel Johnston, capitão e reverendo da cidade, e seus colegas aparecem na casa, informando que o gado dos Jorgensen, vizinhos dos Edwards, foi roubado. Ethan os acompanha e no caminho percebe que aquilo era uma armadilha preparada por índios, cuja intenção era atrair os homens fortes para fora das casas, a fim de invadi-las. Martha, Aaron e o único filho são assassinados, enquanto Lucy e Debbie são capturadas pelos Comanche.
O que começa como uma busca em grupo pelas garotas, se transforma, rapidamente, em uma missão de um homem só, no caso, Ethan, acompanhado de Marty, filho adotivo dos Edwards.
“The Searchers” é o filme que melhor explora a imagem do “herói Western”. O protagonista é um homem obcecado, preconceituoso e brutal, cujo sarcasmo é uma prova do quão frio é. Ele encontra Lucy morta, no entanto, a jornada não é sobre resgatar uma criança indefesa. Ethan não passa anos e diferentes estações atrás de uma tribo indígena para salvá-la. Seu nojo em relação aos índios é tão grande, que, ao concluir que sua querida sobrinha cresceu como uma Comanche, não encontra outra saída a não ser matá-la. Ele não consegue mais enxergar Debbie, somente o inimigo. Podemos dizer que Ethan deseja se limpar, eliminar qualquer parentesco com uma criatura de pele vermelha. É óbvio que o herói aqui precisa ser um assassino, um homem preconceituoso e pragmático. O Velho Oeste, brutal, empoeirado e animalesco, molda o ser humano às suas próprias exigências. Ethan cumpre todos os pré-requisitos, ele é a personificação desse ambiente.
O que torna o filme ainda mais trágico e emocionalmente carregado é a real possibilidade do protagonista ser pai de Debbie, afinal, possivelmente mantinha um caso com Martha. Não interessa se é filha ou sobrinha, Ethan coloca seus princípios acima de sentimentos e pensamentos humanos. A trajetória tem seus momentos violentos, todavia, o que mais chama a atenção é a relação estabelecida entre o “herói” e Marty. Não é nenhum exagero afirmar que são figuras opostas, por isso é tão interessante perceber a influência de Ethan sobre o jovem, que se torna mais durão e se adapta ao Velho Oeste sem perder sua essência. Diferentemente do protagonista, que simplesmente faz o que precisa ser feito, sem sofrimento ou arrependimento, Marty tem uma tremenda dificuldade de se expressar. Ele ama Laurie, filha dos Jorgensen, mas nunca se declara; cuida de Debbie como uma irmã e a protege quando Ethan aponta uma arma em sua direção, contudo, ao tentar expor a raiva que sente de seu colega, esperneia, porque é incapaz de colocar as emoções em palavras. Marty, inclusive, é responsável pelo momento mais engraçado do filme. Após anos de espera, Laurie decide se casar com Charlie, no entanto, na hora da cerimônia, ele retorna, resultando numa sequência surpreendentemente hilária, que mistura a formalidade de um duelo com a violência brutal e o jeito destrambelhado inerente aos personagens.
No clímax, em que Ethan finalmente fica frente a frente com Debbie, a presença da fumaça eleva o suspense, deixando em dúvida qual será a ação do cowboy. Ele a segura no colo como no início, como se fosse uma criança acuada, o que não muda de forma alguma sua visão sobre o espaço que habita e seus inimigos. Ethan teve um breve lapso de humanidade, deixou suas certezas de lado e foi capaz de enxergar a sobrinha (ou filha) que sempre amou. Ford cometeria um erro estrondoso se terminasse o filme dessa forma. Passaria a ideia errada de quem Ethan Edward verdadeiramente é. O último plano é uma das coisas mais geniais que o cinema já produziu. Todos entram na casa dos Jorgensen, felizes e aliviados, prontos para festejar o retorno de Debbie, menos o protagonista, que fica na porta. Posicionado no centro, ele tem duas opções: a civilização e o conforto familiar ou o retorno à selvageria, ao frenético e cruel Velho Oeste. A porta se fecha. Ethan caminha em direção às vastas e vazias paisagens desérticas, completamente sozinho, terminando exatamente como começou. Ethan é o Velho Oeste. Não pode aceitar um romance ou uma existência pacata, precisa seguir adiante, se movimentar e esperar pelo embate, aceitando sua solidão como uma maldição ou um direito inegociável. Sua obsessão por matar índios é o que o move, dá algum sentido à sua vida, não à toa, quando a missão termina, a sensação que fica é de extrema melancolia. Um pouco como Travis Bickle, de “Taxi Driver”, Ethan Edwards vive num estado cíclico, em que a satisfação está na ação, não no feito, que representa apenas a busca por uma nova aventura. Ele gostaria de ter alguém, quem sabe Martha? Provavelmente sim, entretanto, tem convicção de que sua natureza caótica e violenta não suportaria uma existência estática.
A fotografia em Technicolor é memorável. Este talvez seja o Western mais belo de todos os tempos. Muito se deve aos planos gerais de Ford, que capta as paisagens em suas variadas fases e ratifica que o espaço engole o ser humano. As mudanças de estação são, provavelmente, o ponto alto no magnífico trabalho de fotografia. Não apenas por uma questão estética, mas também por salientar a obsessão de Ethan por se manter ativo, por limpar seu sangue e eliminar índios. Os tons quentes são fundamentais para reforçar a ideia do Velho Oeste como um inferno árido e labiríntico. Na sequência em que os Edwards são assassinados, a presença de uma luz mais baixa ressalta o iminente perigo e o medo dos personagens, que tentam se esconder.
John Ford é um gênio. A começar pela já mencionada rima entre o primeiro e o último plano. É o tipo de coisa que somente um grupo muito seleto de cineastas teria a capacidade de conceber. Assim como em “Stagecoach”, Ford aposta na sugestão para deixar o espectador ansioso. O nome de Scar – Comanche responsável pelo rapto de Debbie – é mencionado diversas vezes e ficamos na expectativa de seu encontro com o protagonista. O diretor orquestra algumas sequências extremamente brutais e palpáveis. O destaque vai para a última, que impressiona pela quantidade de personagens em cena e as diferentes ações que ocorrem no mesmo espaço. Com o auxílio de uma montagem precisa e de planos que assimilam a intensidade dos golpes desferidos e das cavalgadas, Ford oferece ao espectador uma visão realista sobre o caos. Outra cena magistralmente conduzida, é aquela em que Ethan, antes de partir apenas com Marty, vê o seu grupo cercado por uma legião de índios. Ford inicia combinando planos gerais com ângulos laterais – primeiro na direita, depois na esquerda -, foca na reação dos personagens, dando indícios de que algo está prestes a acontecer, porém, é somente quando abre o plano, num enquadramento central, que temos a real dimensão da situação – outra aula de como sustentar uma atmosfera angustiante. Ele sempre prezou pela apreciação das grandiosas paisagens de “Monument Valley”, contudo, alcançou um outro nível em “The Searchers” – sua composição de quadros é maravilhosa. Ford correu um risco considerável ao conduzir uma obra pesada e inserir uma subtrama com momentos leves e engraçados que não serve apenas de alívio cômico. Laurie é uma personagem interessante, uma jovem apaixonada que vive em um mundo no qual mulheres solteiras são mal-vistas e ela não pode fazer nada para impedir Marty de seguir em sua jornada. O diretor ridiculariza os soldados yankees, o que também auxilia na comicidade.
Seus close ups retornam, como sempre, bastante intensos, fomentando rivalidades. O encontro entre Scar e Ethan é incrível – criaturas imponentes. E extraindo sentimentos poderosos de seus personagens – o ódio que o protagonista sente pelos índios está em seu olhar.
Jeffrey Hunter dá vida a Marty, o ponto de equilíbrio para a animosidade de Ethan. No entanto, é o protagonista que mexe com a personalidade do jovem, tornando-o mais “durão”, pronto para o impacto do Velho Oeste. Ainda assim, é o seu afeto e sensibilidade que salvam Debbie. O ator transita muito bem dentro de seu arco, que não passa somente por um processo de amadurecimento, mas por notar que há muito a evoluir para se tornar o homem que deseja ser.
John Wayne interpreta um dos personagens mais complexos e fascinantes da história do cinema. Sua composição, a princípio, passa por um genuíno amor pela família. Gradativamente, ele mostra que seu lugar não é ali, que sua personalidade não é nada afável, pelo contrário, direta e violenta. Mais do que uma vítima do Velho Oeste, Ethan é o Velho Oeste, em sua vastidão, monstruosidade e solidão. Wayne é talentoso o suficiente para apresentar lapsos de humanidade, deixando claro que não se trata de algo recorrente. A forma como segura o braço no último plano, antes de caminhar em direção ao deserto, denota sutilmente sua condição solitária – simplesmente sensacional.
“The Searchers” é tão bom, importante e influente quanto “Stagecoach”. Outra obra prima inigualável de John Ford.
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