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Ao fim da época de ouro hollywoodiana, a “Screwball Comedy”, subgênero que se popularizou nesse período, foi praticamente deixada de lado. Eu entendo, é difícil superar o timing de Cary Grant e Howard Hawks, por exemplo; por isso fico feliz quando me deparo com pérolas como “The Paper”, um exercício apaixonante de Ron Howard na arte da comicidade, que consegue ser, simultaneamente, uma homenagem à clássicos – especialmente “His Girl Friday”, de Hawks – e um trabalho com assinatura pessoal.

Henry está prestes a se tornar pai. A barriga de Martha parece um balão, mas ele tem uma entrevista de emprego e precisa dar conta da manchete de seu jornal. A redação é uma sandice; as pessoas não ficam paradas, falam sem parar e as mesas são tomadas por montanhas de papel.

A fumaça do cigarro de Bernie, o patrão, serve como símbolo para o caos generalizado. Eu tenho uma ideia básica acerca do funcionamento de uma reunião de pauta e Howard chega a um nível cômico de veracidade. Os colunistas soltam palavras-chave, frases avulsas e vão anotando o que há de mais importante. Entre risadas e discussões, algumas bolas de papel voam.

Dois jovens negros, pegos na cena de um homicídio, foram presos, todavia, o burburinho é de que eles foram usados para cobrir empresários “importantes”.

Henry tem a chance de ir para um jornal maior, que lhe pagará um salário melhor e cobrará menos horas de trabalho. Martha, que também é da área, sabe que essa é uma grande oportunidade. O protagonista até considera aceitar a proposta, mas quando vê a redação organizada e é obrigado a escutar o seu potencial patrão chamar o seu atual jornal de “bonitinho”, decide trapacear. Ele rouba informações quentes sobre o tal caso e retorna à sua “casa”, disposto a descobrir a verdade e a publicar a manchete mais bombástica possível.

Na hierarquia do “New York Sun”, Alicia está à frente de Henry e não está interessada em investigações. “Vamos sujá-los hoje e limpá-los no sábado. Todos ficam felizes”. Seu esforço burocrático visa somente o lado financeiro, que, como Bernie frisa, não pode ser o objetivo de um jornalista; não que ela não tenha o direito de sonhar alto, o fato é que ninguém enriquece nesse meio. O protagonista não dá a mínima para um aumento, o jornalismo é a sua droga favorita – correr atrás de um furo é como uma viagem lisérgica.

Caso ele não colha provas suficientes para sustentar a inocência dos jovens, a manchete será de Alicia. A coleção de personagens é fascinante. Bernie nos tira um pouco da redação, adicionando um drama pessoal envolvendo a ex-mulher que o detesta e a filha que não deseja vê-lo. Phil exige que outra cadeira ortopédica seja comprada, já que a anterior foi roubada por Henry. McDougal está sendo ameaçado por Sandusky, comissário do estacionamento, então dorme no sofá do escritório e carrega uma arma – que, em determinado momento, ele dispara a fim de interromper o falatório.

Howard sempre destaca os relógios, responsáveis pela existência dos jornalistas, presos à prazos e dispostos a superarem rivais diariamente. “O mundo pode mudar em vinte e quatro horas” é uma frase de efeito para o ouvinte, no entanto, para quem realmente põe a mão na massa, é o despertar de um frenesi ininterrupto. Henry fala com três pessoas ao mesmo tempo e muda a entonação, ressaltando que a interpretação está no sangue de todo jornalista.

“The Paper” é uma panela de pressão que só estoura após uma construção elaborada de seu terreno. No jantar com Martha e seus pais, Henry parece à beira de um colapso nervoso. A câmera lenta, os cortes em sequência, o design de som, o suor e os planos-detalhe nos direcionam a uma realidade distorcida e entorpecida. Nada é exagerado, passamos o dia naquela redação ensandecida, vivenciamos a bagunça, a gritaria e a correria potencializadas por uma direção que acompanha o ritmo de seus personagens e por uma montagem igualmente enérgica.

O filme é repleto de situações que, se eu simplesmente citasse, soariam forçadas ou patéticas. Querem apostar? Henry e Alicia trocam socos para desligar a prensa; McDougal vai justamente ao bar em que seu algoz estava completamente embriagado, resultando numa briga cartunesca; Alicia, num raro momento de empatia e lucidez, toma um tiro na perna.

Isso tudo numa mistura de briga de egos, busca pela verdade e prazer pela adrenalina. A narrativa é alinhada, a linguagem de Howard caminha junto à insanidade. A câmera, que já não parava, passa a ser manuseada na mão com maior frequência; os ângulos holandeses ajudam na compreensão da intensidade da jornada; os relógios estão por todos os lados; o sarcasmo é delicioso; a montagem fica cada vez mais alucinante, criando também um contraste engraçadíssimo entre a pacatez de Bernie, arrependido pelos erros do passado, e a luta pela publicação da manchete.

Falando na montagem, o paralelismo estabelecido entre o nascimento do filho de Henry e o jornal sendo impresso é espetacular – seus dois bebês. O protagonista tem o seu arco, termina o filme com a certeza de que se quiser ser um bom pai e um marido presente, terá que controlar o ímpeto jornalístico.

Além de um diretor com um timing irrepreensível, “Screwball Comedies” dependem de intérpretes em estado de graça, imersos na maluquice.

Robert Duvall, Glenn Close, Marisa Tomei e Randy Quaid não decepcionam; dito isso, o grande destaque é Michael Keaton, que, numa performance à la Cary Grant, supera as expectativas e carrega o espetáculo.

“The Paper” é uma obra prima negligenciada. Esse status deve mudar, as pessoas precisam ver esse filme.

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