Skip to main content

A ansiedade por conhecer a obra completa dos cineastas mais importantes da história é algo comum na vida de qualquer cinéfilo e de quem trabalha com cinema. Sentir-se pequeno diante da vastidão de estilos e formas é inevitável. “The Music of Chance” é o tipo de filme que muda a nossa percepção; afinal, como algo tão desconhecido pode ser tão excepcional?

Os caminhos da curiosidade artística são sempre certeiros, levando-nos ao possível, não ao todo. Perto do todo, não somos nada – e ter a oportunidade de se deparar com joias escondidas nas profundezas do universo cinematográfico é o maior presente que um crítico/cinéfilo pode ter. 

O diretor Philip Haas abre a narrativa com um tema operístico, constituindo, de início, uma atmosfera melancólica. Parte da trilha sonora é diegética, vem das fitas de Jim Nashe, um homem misterioso que, tendo o carro como única companhia, adotou uma realidade andarilha. Sem destino, no meio da estrada infinita, Jim avista Jack Pozzi, um “jogador profissional” ensanguentado. O trambiqueiro, orgulhoso de sua profissão, lembra, fisicamente, Dustin Hoffman, em “Straight Time”, e Agostinho Carrara, de “A Grande Família” – o blazer azul claro e a camisa de bolinhas são de uma cafonice inigualável, perfeita para caracterizar aquele que se vangloria por existir no vazio eterno. A carona rapidamente se transforma numa parceria de alto risco, na qual Jim aceita investir na sorte do novo amigo. “Veja isto. Ele não é maior que eu. Se eu soubesse fazer aquilo, nada teria me acontecido ontem”, afirma Jack, enquanto assiste a um filme de Bruce Lee, provando ser uma figura ingênua, digna de pena, não de ódio. 

Jack foi convidado por dois milionários para uma partida de poker. Segundo ele, a vitória é garantida. Um dos grandes méritos de Haas, é deixar o espectador sempre na expectativa, sem ter muita noção do que irá acontecer. Jim tem uma filha e pretende visitá-la, mas não fala sobre uma esposa, nem sobre a mãe da garota. Sua expressão, serena e passiva, esconde algo? Estaria ele pensando em algum tipo de trapaça? A dupla chega na casa dos milionários; a partir daí, Haas demonstra ser um diretor extremamente sutil e preciso. Quando ele corta para um plano em que a câmera está posicionada do lado de dentro do portão, somos informados de que algo não está certo. Stone e Flower, os ricaços, vestem ternos cor de “creme” e camisas brancas, esbanjando poder. Eles conquistaram tal fortuna ganhando na loteria e, além de deslumbrados, basicamente confessam que não sabem mais o que fazer com tanto dinheiro. Stone mostra aos convidados seu grande projeto: uma maquete do “mundo perfeito”, uma utopia bizarra e que ganha um valor simbólico ao longo da trama.

Ao abrir o quadro, Haas explora a magnitude da mansão e de seu altíssimo pé direito – novamente, informando-nos, com a maior discrição, de que Jack está em desvantagem. O silêncio, as trocas de olhares e os planos-detalhe de fichas e cartas sintetizam a tensão e o jogo mental por trás do poker. “The Music of Chance” até fala sobre a ganância humana e a compulsão que pode levar homens cegos ao buraco; no entanto, interpretá-lo como um “filme de poker” seria muito pobre. Em dívida com os milionários, Jack e Jim aceitam a seguinte proposta: trabalharão por 50 dias no enorme jardim da propriedade, construindo um muro de pedras. Haas, então, começa a abordar temas importantes ao mesmo tempo em que se aprofunda na relação entre os amigos e em suas individualidades. Como Jim rodou 150 mil quilômetros se seu carro foi recentemente comprado? “Andar rápido por estradas vazias e sentir que tudo passa a voar”. “Não há motivo para parar”. “Nada dura mais de um momento. Nada te retém, nem te pesa”. 

-Via alguém com frequência e pedi-lhe que casasse comigo. 
-E…?
-Nada, ela disse que não.

Jim dirige para esquecer; para evitar a inércia; para buscar algum tipo de propósito. As cidades são iguais; ele não enxerga nada além de sua própria tragédia. Jack foi a chance de realizar algo; de embarcar numa jornada e, quem sabe, de se conectar com outro ser humano. Quando eles recebem uma prostituta em seu trailer, Haas posiciona a câmera atrás do ombro do protagonista, ressaltando a proximidade entre Jack e a moça e o absoluto desinteresse de Jim. A dupla, antes formada por desconhecidos, passa a respeitar as diferenças alheias. O laço fraternal é bonito de se acompanhar; como se admitissem a própria solidão e que precisam um do outro. Para Jack, só existe o poker, ou seja, sua vida é uma sequência de porradas. Sua dificuldade em assumir vulnerabilidades é o principal sintoma de seu vazio – quem é realmente feliz, não se exalta tanto. Os meses passam e o trabalho está longe do fim. Eles carregam pedras, mas as demandas não acabam. Jack e Jim se tornaram peças da maquete; peças de um jogo comandado pelos mais ricos. Sem novos propósitos, os milionários testam o tamanho de seu poder, diminuindo os seres humanos ao valor de ovelhas que habitam um ambiente cercado. Do momento em que aceitam a oferta em diante, Jack e Jim não saem do jardim e Stone e Flower não aparecem mais – princípios da divisão feudal. 

Haas evita respostas, garantindo ao espectador a possibilidade de interpretar a obra da forma que quiser. Sua crítica ao capitalismo, um sistema que privilegia seus Deuses particulares e a desigualdade social, é nítida e está sintetizada naquela propriedade, onde homens de diferentes “classes” não se encontram. Nenhuma tarefa simbolizaria tão bem o compromisso cego que o ser humano estabelece com ofícios que não fazem sentido algum quanto a construção de um muro. Sorte e destino são elementos fundamentais na construção narrativa; afinal, por que algo conspira contra uns e a favor de outros? O livre arbítrio é uma ilusão? Há um subtexto bíblico, identificado, por exemplo, quando Murks, empregado dos milionários, fala em “Juízo Final”. O paralelo entre o trabalho dos amigos e o Mito de Sísifo é, provavelmente, o mais fascinante costurado por Haas. Na mitologia grega, Sísifo foi um personagem condenado a repetir eternamente a tarefa de empurrar uma rocha até o topo de uma montanha; todavia, sempre que se aproximava do topo, a rocha caía, obrigando-o a retornar ao início. O paralelo se torna ainda mais sensacional quando levamos em conta a natureza cíclica e vazia dos personagens – um dirige sem qualquer pretensão e o outro vive na incerteza dos jogos de sorte. Haas amarra todos os temas e possibilidades num desfecho que vai ao encontro do absurdo testemunhado por Sísifo. Eles podem até mudar de lugar, mas não de destino. Continuam a andar em círculos, encarando o ciclo como uma verdade incontestável e imutável. 

James Spader oferece uma performance riquíssima, desenvolvendo os trejeitos de um “jogador” ganancioso sem esquecer de suas nuances mais humanas e delicadas. Spader cria um sotaque peculiar que funciona incrivelmente para a caracterização de Jack, o homem que encarna personas e que depende do azar alheio para seguir de pé. Mandy Patinkin é o contraponto ideal, exibindo um ar misterioso e melancólico com a expressividade de um sujeito que cansou da vida. Jim até tenta, mas a mediocridade está sempre lá para recolocá-lo no início da montanha, prestes a levar a rocha para o topo. 

Rico em termos de linguagem e argumentação, “The Music of Chance” foi a maior surpresa que eu tive nos últimos anos.

O que você achou deste conteúdo?

Média da classificação / 5. Número de votos:

Nenhum voto até agora. Seja o primeiro a avaliar!