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“O Franco Atirador” foi o primeiro filme sobre a Guerra do Vietnam que alcançou um status importante e é, até hoje, o mais profundo e especial. Michael Cimino não está interessado na ação, seu foco é o indivíduo e as relações que se deterioram.

Durante a primeira hora, o cineasta opta pela leveza jovial, investindo em interações genuínas e carinhosas que, eventualmente, nos colocam ao lado deles. O espectador é parte do grupo, se preocupa com seus irmãos e se diverte nas idas ao bar local. Eles trabalham numa metalúrgica e estão dispostos a servir os Estados Unidos no Vietnam. O trio central, assim como boa parte da comunidade americana, não enxerga o óbvio por trás de um evento trágico, apenas o orgulho e a oportunidade de se tornarem heróis nacionais.

Se Cimino não investisse na relação entre os personagens, “O Franco Atirador” seria apenas mais um filme sobre um tema que se tornaria batido. Por que Steven se casa poucos dias antes de embarcar? Ele faz planos para o futuro e se compromete com a sua amada, mas está a um passo da morte. A cerimônia é minuciosamente conduzida por Cimino, que enfatiza os detalhes que fazem da igreja um espaço sagrado. A festa é uma longa homenagem a amizades puras e inegociáveis. O salão, abarrotado de gente, obviamente, é decorado com bandeiras dos Estados Unidos e imagens dos bravos guerreiros. Ao avistarem um veterano da Guerra, eles oferecem uma bebida e perguntam sobre a experiência, todavia, o tal sujeito não consegue dizer nada além de “dane-se”. De um lado do balcão, estão os garotos idealizadores e inocentes, do outro, o homem que conheceu o horror e enfrentou a dura desilusão – como se olhassem para o próprio futuro. Na hora do brinde matrimonial, Angela derruba duas gotas de vinho em seu vestido, pontuadas por um plano-detalhe que serve de prenúncio para o que está por vir – o Padre havia dito que, caso alguma gota espirrasse, isso significaria azar.

Nick é o mais sensível e incerto do grupo. Em determinado momento, ele se confunde e diz “se eu voltar”, em vez de “quando eu voltar”. Nick namora Linda, que é constantemente agredida pelo pai, e faz o possível para garantir sua segurança e felicidade.

Michael é o líder; o mais sério e seguro de si, o que não o torna menos carismático. Sua relação com Nick é um dos grandes baratos do filme, pois, de certa forma, um complementa o outro e a admiração nunca deixa de ser mútua. O protagonista também é apaixonado por Linda, o que é ressaltado através de rápidos olhares e pelo impulso contido de beijá-la. O filme poderia ser sobre melhores amigos que brigam pela mesma mulher, mas não, eles estão destinados a “coisas maiores” e o cuidado de Cimino ao inserir sutilezas, como essa paixão secreta, ratifica o seu desinteresse pela guerra em si.

Caçar alces é a religião de Michael, que não tolera qualquer tipo de distração ou aborrecimento. Esses são os últimos disparos que lhe trarão algum tipo de prazer, já que, poucos dias depois, ele, Nick e Steven estariam bem longe de casa. Cimino é um cineasta com uma rara capacidade para conceber quadros estonteantes e, ao focar nas belas montanhas, não chama a atenção para si, mantendo as interações e um clima descontraído enquanto observamos a natureza.

O trio estava acostumado com o fogo da metalúrgica e a fumaça que tomava conta da pequena cidade na Pensilvânia e, a partir de um corte seco, Cimino vai de uma cena intimista para a explosão – o fogo e a fumaça seguem intactos, agora, apavorantes.

O segmento no Vietnam pode ser sintetizado pela longa e traumatizante sequência da roleta-russa. Em uma Guerra aleatória e sem sentido, nenhum outro “jogo” seria tão simbólico. Sim, uma Guerra em que homens apontam armas para a própria cabeça e torcem para não se suicidarem. As personalidades, estabelecidas na primeira parte, são potencializadas aqui. Steven tem ataques de pânico; Nick, imerso às sombras, fica em silêncio; e Michael tenta acalmá-los e planeja uma fuga.

A escuridão vietnamita, os espaços apertados, as ruas inabitáveis, a decadência e os close ups de jovens assumindo a condição de sub-humanos são intoxicantes. Cercados de hostilidade, os rostos dos garotos que brincavam no bar se apagam e o plano que nos coloca na perspectiva de Steven, atordoado, preso num fosso, é assustador.

Cimino sabe a hora de instaurar o caos, movimentando sua câmera freneticamente e optando por cortes constantes. Na enfermaria, vemos a bandeira americana em primeiro plano e, ao fundo, diversos sacos com corpos. O exato momento em que Nick se entrega à insanidade é brilhantemente conduzido por Christopher Walken, cujo olhar distante e dificuldade de falar machucam. Ele tem medo de ligar para Linda; tem medo dela perceber que seu futuro marido não é mais o mesmo. Cada vez mais solitário e imerso a um universo que eleva a roleta-russa ao posto de entretenimento, Nick abandona sua alma, se transformando num corpo à deriva.

Michael finalmente retorna e, ao perceber que prepararam uma festa de recepção, se esconde. Ele não quer ser condecorado, sabe que não é um herói. Assim como Nick, o protagonista também guarda uma foto de Linda na carteira, sendo ela seu único ponto de esperança e sanidade. Cético e deprimido, Michael aprendeu a responder perguntas tolas e não se assusta com os tons frios da Pensilvânia. “Como é tomar um tiro?”

Linda não é apenas um peão dentro da trama, seu drama, além de maravilhosamente bem trabalhado, é essencial para apresentar a ótica da mulher abandonada, que, após anos de espera, não se vê totalmente abraçada, afinal, está diante de um homem diferente daquele que conheceu; um homem que quer reaprender a viver. A escuridão o acompanhará para sempre, não há escapatória.

Michael descobre que Steven voltou e que não está em casa. Em uma das sequências mais tristes da obra, vemos ele numa enfermaria para veteranos, sem as pernas, jogando bingo – assumiu a velhice antes de se tornar um adulto estabelecido. Steven não aceita sair dali, não quer ser visto daquela forma humilhante e digna de pena.

O protagonista até tenta caçar novamente, todavia, tudo que ele não quer carregar é uma arma. O plano aberto no qual ele parece andar nas nuvens é extraordinariamente lindo. Michael já chegou perto de ir ao além em definitivo, aquele passeio não é uma novidade. Perdido sem Nick e à beira de um colapso, Michael retorna ao Vietnam, desta vez, ainda mais caótico e brutal. Poucos reencontros são tão dilacerantes e trágicos. O rosto de Walken é um mar de “nada”; a sensação é de que seu personagem sofreu uma lobotomia e, considerando a sua personalidade acolhedora e adorável, fica difícil conter as lágrimas. A selva é composta por animais sedentos por violência gratuita, organizadores gananciosos e participantes que, em sua maioria, só querem esquecer que um dia existiram. Nick passou a ser a personificação de uma eterna roleta-russa.

Se começar com um casamento e terminar com um enterro não é poderoso o suficiente, sinceramente, eu não sei o que é.

Christopher Walken venceu o Oscar de ator coadjuvante e, de fato, sua performance é a mais fascinante do filme, no entanto, não posso deixar de elogiar Robert De Niro, que, na minha opinião, também merecia a estatueta – gosto do trabalho de Jon Voight em “Coming Home”, mas De Niro está num nível acima. Desde o início, Michael demonstra ser uma figura introspectiva e empática, características que crescem ao longo da trama. Seu choro no final me lembrou o de Edward Norton em “American History X”.

Embalado por uma trilha sonora melancólica, “O Franco Atirador” é o épico pelo qual a “Nova Hollywood” deve ser relembrada.

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